Resumo
Falar de Moçambique e de modo particular de Cabo Delgado é penetrar num mar de problemas que se vão agudizando, sobretudo com o actual clima resultante das últimas eleições, registando-se fricções entre a FRELIMO e os militantes da RENAMO que constestam as eleições autárquicas realizadas em Outubro de 2023. Mas o caso de Cabo Delgado é um bico à parte, pois os seus problemas já conquistaram “barba branca”. Ao lado deste caso concreto, o clima de instabilidade em Moçambique não é dos bons, precisamente por causa das contestações apresentadas pela oposição e boa parte da sociedade civil.
De relevar que os Bispos Católicos de Moçambique, na sua carta Pastoral de Agosto de 2023, antes mesmo das eleições, já apelavam que os candidatos e os eleitores fizessem tudo o que estivesse ao seu alcance para que não se repetissem episódios de violência, perturbações, provocações e agressões que aconteceram no passado. E diziam: “Para os partidos e candidatos, o nosso apelo é que o lema da sua conduta ética seja: ‘saber ganhar, saber perder”. Infelizmente, se tem constatado que os processos eleitorais têm sido ciclicamente uma ameaça à paz que se deveria viver e consolidar em Moçambique. ″A nossa experiência democrática assim o confirma, como todos pudemos constatar com amargura em anteriores pleitos eleitorais″.
Apresentamos aqui estas linhas de reflexão procurando despertar a consciência dos políticos e líderes das comunidades de Cabo Delgado, a necessidade de promover um ambiente de paz e uma justiça equitativa mais efectiva. Apesar de ser uma situação que afecta este povo, não deixa de ser um problema que incomoda toda a região austral. Como parte da Igreja da região, a preocupão dos Bispos não se alhea daquela parcela. O que mais chama atenção é saber que o problema não é novo e se vai perpetuando no tempo.
Palavras-Chave: Cabo Delgado, pobreza, deslocamentos, guerra, recursos naturais, exploração
Panorama
Se tivermos de nos situar no tempo e contexto, perceberemos que o conflito de Cabo Delgado, na sua configuração moderna começou em 2017, quando jovens muçulmanos radicalizados atacaram a esquadra da polícia local e o posto militar em Mocímboa da Praia. Desde então, a violência na província moçambicana de Cabo Delgado causou mais de 3.900 vítimas civis. Os elevados níveis de pobreza e as disputas pelo acesso à terra e ao trabalho contribuíram para o descontentamento local. No início, as autoridades não quiseram solicitar ajuda externa para enfrentar os insurgentes, mas em 2021 mudaram de ideias. Segundo algumas informações o Ruanda e a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) enviaram tropas para combater os jihadistas. Uma estratégia que deu frutos num curto prazo.
A importância de Cabo Delgado para a estratégia económica do governo é clara, e ao mesmo tempo uma fonte de frustração para a população local. Sua importância reside nas ricas reservas offshore de gás natural que estão a ser exploradas, em colaboração com empresas multinacionais. Se esta insurreição não for controlada, poderá ameaçar não só a estabilidade nacional, mas também corre o risco de espalhar a instabilidade da Sahelização ao longo da costa da África Austral e Oriental, proporcionando novos territórios para a expansão do Estado Islâmico (EI/ISIS). Segundo o parecer de Juan Alberto Mora Tebas «a origem do conflito deve ser procurada num amálgama de causas, mas há um aspecto que parece sobressair: o acesso à terra e aos seus recursos» .
Vejamos que desde Outubro de 2017, a província de Cabo Delgado, em Moçambique, tem sido assolada pelo fenómeno da violência armada. Como consequência muitas pessoas foram deslocadas para a região sul da província e para outras áreas do país. Neste entretanto vítimas fatais foram registadas.
Nos primeiros dias de 2020, já se ouviam rumores da tragédia em Cabo Delgado, de grupos jihadistas que assolavam o norte da província, massacrando gente e incendiando aldeias. Mas tropas moçambicanas selaram a região, não havia jornalista que conseguisse passar, ouviam-se apenas relatos isolados, sempre com as autoridades a garantir que tudo não passava de mero banditismo. Até que, finalmente, o bispo de Pemba, Dom Luiz Fernando Lisboa, veio a público denunciar a escala da tragédia, que uma maré de refugiados fugia de suas casas, inundara a capital distrital e precisava de ajuda imediata. Já havia pelo menos 500 mortos na província, garantiu o Bispo, cuja mensagem ressoou na imprensa internacional .
Não foi uma denuncia sem consequências. Da última vez que o Jornal I falou com Dom Luiz, acusavam-no de alarmismo, “bispo semeia ódio”, acusava o jornal moçambicano Público, que apelava à sua expulsão do país – desde então, registaram-se milhares de mortos, com centenas de milhares de deslocados. O sacerdote brasileiro, que chegou à Pemba como missionário, nunca desarmou.
Os impactos desses conflitos têm configurado uma violência lenta e estrutural em Cabo Delgado, que se reproduz ao longo do tempo e do espaço, de forma dispersa, subtil, aparentemente insignificante e invisível aos olhos, mas que acaba por se penetrar em indivíduos e sociedades e que constitui um dano repetitivo que, mais cedo ou mais tarde, manifesta-se como letal.
Além disso. O problema de Cabo Delgado não pode ser olhado como um problema de Moçambique, mas como um problema da região. Por isso a Igreja não se sente longe daquele povo e quer transmitir a ele uma mensagem de esperança e rezando juntamente com ele, para que se encontrem caminhos de solução dos seus desafios políticos, económicos e sociais.
Causas dos conflitos em Cabo Delgado
Para nos permitir ter um quadro relativamente desenhado da situação, pode-se afirmar que as actuais tensões são fenómenos multifacetados que têm as suas raízes em conflitos seculares latentes, reavivados pelas recentes actividades extractivas (gás, mineração, exploração madeireira…) e pelas políticas aplicadas na região. Contudo, a situação parece ser muito mais complexa, e vários motivos são apontados como possíveis causas desta violência persistente. Esta constelação de causas poderia ser agrupada sob diversas abordagens diferentes:
1- Descontentamento contra o governo
Seria uma revolta popular contra os abusos de poder e a falta de expectativas de melhorias nas condições de vida. De referir que Mocambique continua a viver um clima de instabilidade em consequência de muitas manifestações depois das eleições autárquicas de Outubro de 2023. A oposição não aceita, até hoje, que as eleições tenham sido justas. Muitos organismos internacionais igualmente e as entidades religiosas locais, nos seus comunicados foram apelando para que o actual partido no poder, a FRELIMO, trabalhasse para garantir lisusa e transparência nas eleições. A constestação das eleições é quase geral. Pelo que tudo indica a FRELIMO quer continuar no poder a todo o custo, mesmo sem o consentimento do povo e tudo faz e mais alguma coisa para se manter aí. Mas refiramos que entre as questões que têm gerado descontentamento com o governo estariam:
- a) Disputas por terras. Causada pela deslocação de pessoas pelas empresas extractivas, instaladas no Cabo Delgado. Perder terras é pior do que perder propriedades, pois perde-se também a identidade, o modo de vida, a dignidade e o acesso a bens materiais e imateriais.
- b) Corrupção endémica. Este é um pobrema que afecta não só Moçambique, mas boa parte dos paises e governos africanos. Particularmente em Moçambique esta crise levou a uma queda acentuada do crescimento económico, causando uma crise de governação e um abrandamento económico prolongado.
- c) Desemprego.
- d) Deterioração das condições de vida e alastramento da pobreza.
- e) Falta de participação na tomada de decisões políticas.
- f) Abusos de poder. As execuções levadas a cabo tanto pelas empresas de segurança privada das empresas transnacionais como pelo governo agravaram a situação, causando grave descontentamento e subsequentes protestos. Um exemplo disso foi a expulsão, no início de 2017, de mineiros artesanais em favor de concessões mineiras comerciais. De acordo com um relatório da Amnistia Internacional, as forças de segurança do Estado realizaram ataques ferozes contra civis acusados de colaborar ou apoiar o Al-Shabaab. Policiais militares e policiais supostamente cometeram execuções extrajudiciais, actos de tortura e maus-tratos .
2- Descoberta e exploração de recursos
A ligação entre a guerra e os recursos naturais é recorrente nas análises que têm sido feitas do caso de Cabo Delgado, talvez mesmo a principal causa. Esta é uma interpretação que procura relacionar as causas da guerra com a descoberta de gás e a exploração de riquezas naturais (rubis e madeiras preciosas). O aumento do investimento externo em Cabo Delgado também alimentou a agitação, uma vez que as elevadas expectativas de rendimento e emprego das comunidades locais não foram satisfeitas. Uma pesquisa recente do Instituto de Estudos de Segurança (ISS) mostra que os habitantes de Cabo Delgado consideram a descoberta e gestão de recursos (gás e rubis) como uma das causas mais importantes da insurgência .
O problema de as pessoas serem obrigadas a fugir da violência carregam uma experiência marcada pelo deslocamento forçado. É importante entender suas vidas a partir de uma perspectiva processual, em constante mudança, e como a memória actua sobre elas, gerando respostas adaptativas às novas situações, assim como influencia suas expectativas para o futuro. A pessoa deslocada constrói novos mundos de vida a partir da memória, da tradição e das suas capacidades. O deslocamento é um momento traumático da experiência e constitui-se como um referencial para reorganizar e reinterpretar sua história, cultura, sociedade e identidade em sentido amplo.
3- Motivos religiosos
As ideias fundamentalistas wahabitas espalharam-se entre os kimwani (pescadores dos distritos costeiros). A isto somou-se o ódio, devido a queixas históricas e recentes, contra os makonde (cristãos do interior), que sempre estiveram intimamente ligados ao poder. Em 2015, mulheres e meninas começaram a ser vistas usando niqab e a ouvir histórias de jovens e crianças de 13 a 14 anos, que receberam bolsas de estudo para estudar o Alcorão em outros países .
Entre as causas da violência que foram apontadas estão: conflitos religiosos entre diferentes denominações islâmicas, interesses sobre a terra e recursos naturais da região, presença de grandes projectos de extracção (com o maior investimento na história da África Austral no projecto de extracção de gás da Bacia de Rovuma), pobreza e desigualdade, tráfico ilegal de drogas, marfim e pedras preciosas, entre outras.
- a) Levante jihadista islâmico. Com conotações salafistas, liderados por moçambicanos radicalizados na Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Qatar e outros países africanos e que, em ligação ideológica com seguidores tanzanianos, iniciaram acções violentas em 2017 e, mais tarde, em 2019, transformaram-na numa guerra jihadista , já em conluio com o Estado Islâmico. As razões seriam:
- b) Tensões sociais. A luta geracional e ideológica dentro da comunidade muçulmana (sufi) do norte de Moçambique e um sentimento de marginalização em relação aos grupos étnicos cristãos geraram um movimento religioso que se tornou a actual insurgência extremista. O Norte de Moçambique concentra a maior parte da minoria muçulmana do país, há muito marginalizada pelo poder político central. O facto de existir uma minoria católica (32,9%) e uma maioria muçulmana (54%), torna-o um terreno fértil para os jihadistas.
4- Motivos políticos: um relance histórico de seus antecedentes
Tal como Angola, com quem Moçambique partilha muitas similitudes, não só por terem sido colonoizados ambos por Portugal, o monopartidarismo de inspiração marxista-leninista e a guerra civil prolongada pós-independência, bem como a simultaneidade temporal das transições, encontramos outros elementos em comum. Depois da independência em 1975, Moçambique se viu afectado por um conflito interno quando o governo marxista, apoiado em parte pela União Soviética e Cuba, lutou contra as forças anti-comunistas financiadas pela Africa do Sul e a Antiga Rodésia (agora Zimbabwe) pelo controlo do país. O conflito terminou formalmente com o Acordo de Paz Global (Roma, 4 de Outubro de 1992), mas muitos dos seus efeitos persistiram e as lutas políticas entre as principais forças da oposição e o governo central continuaram .
Cabo Delgado é uma província que está há muito tempo pronta para conflitos. Na verdade, as primeiras manifestações de revoltas e violência datam de 2007 no noroeste e foram levadas a cabo por moçambicanos radicalizados, principalmente em madrasas e mesquitas (wahhabitas) na Arábia Saudita e que não encontraram terreno favorável em Moçambique – nem em Cabo Delgado — pela implementação dos seus ideais religiosos e comportamento social, sendo rejeitados pelos líderes muçulmanos locais (Sufis) relacionados com o governo . Em 2007, jovens muçulmanos frustrados nos distritos do sul da província dominados pelo grupo étnico Kimwani ou Makua separaram-se do Conselho Islâmico de Moçambique (CISLAMO) para formar a seita fundamentalista Ansar al Sunna, também conhecida como Al Sunnah wa Jama’ah ( ASWJ) e começou a desafiar a autoridade dos líderes religiosos locais. A escalada da violência entre o movimento religioso e as forças de segurança tornou-se numa insurreição total.
Em 2015, as tensões entre o partido no poder de Moçambique, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), e o partido da oposição Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) transformaram-se em confrontos armados. Em Dezembro de 2016, as partes concordaram com um cessar-fogo e, após longas negociações, em 6 de Agosto de 2019, foi assinado um acordo de paz (Acordo de Maputo ), numa última tentativa de pôr fim à violência intermitente que persistia desde o fim da guerra civil em 1992.
5- Divisões étnicas e linguísticas.
Alguns analistas acreditam que se trata de uma rebelião dos Kimwani ou Makuas contra o que consideram ser uma invasão do povo Makonde, a maioria do partido no poder (FRELIMO), que não tem conseguido corrigir as discrepâncias étnicas e sociais há quase cinco décadas. Na verdade, os ataques dos insurgentes revelam uma dimensão étnica, pois os relatórios confirmam que durante os ataques às aldeias habitadas por Kimwani e Makonde, “as casas que queimaram pertenciam a membros predominantemente cristãos (makondes)» .
5-Influências externas
Isto está rigorosamente na base de todos os conflitos que se registam em África. É historicamente comprovado. Há sempre uma mão externa a influenciar a direcção dos conflitos. No caso específico que estamos a analisar, a educação wahabita financiada pelos países do Golfo alimentou a discórdia religiosa e o descontentamento económico entre os jovens. Muitos dos combatentes locais foram acolhidos por redes salafistas-jihadistas pré-existentes na África Oriental, que os enviaram para outros países para treino .
Consequências
a) Problemas da crise humanitária das pessoas deslocadas, que fogem da violência armada nos distritos do norte de Moçambique. Os ataques ao longo da última semana de Fevereiro de 2024 deixaram a aldeia, onde todos, nas várias comunidades, se dedicam às machambas da agricultura, vazia. Face a isto, a solução tem sido fugir às pressas, para a vila de Chiùre, hoje o último reduto de alguma segurança nas proximidades. Ainda assim, uma viagem de três dias a pé, por campos agrícolas e estradas, num movimento de milhares de pessoas em simultâneo. A nova vaga de ataques provocou a fuga de 58.116 deslocados em pouco mais de duas semanas, segundo um novo balanço divulgado nesta terça-feira, 27, pela Organização Internacional das Migrações (OIM), enquanto o Govermo aponta para 67.321 deslocados. “Se esses ataques subirem de intensidade, como parece estar a acontecer, poderão até prejudicar politicamente a província de Cabo Delgado e inviabilizar ou limitar o exercício do direito eleitoral em algumas regiões ou locais da província, quer dos votantes e dos partidos concorrentes”, afiança director de programas do IMD .
b) A recorrência histórica da violência;
c) Os baixos níveis de indicadores de desenvolvimento humano e a escalada de pobreza;
d) A intensificação da exploração extractiva dos recursos naturais e as mudanças nos modos de organização do território.
Papel da Igreja no contexto do Cabo Delgado: propostas como Igreja da região
A Igreja é incotornável, se se quiser construir um ambiente pacífico em Cabo Delgado e em Moçambique, de modo geral. A igreja se apresenta, por excelência, vocacionada à reconciliação, buscando agir no intuito de que as partes em atrito se entendam e encontrem condições justas de paz. Talvez por isso, o lugar preferido da Igreja seja justamente no meio dos mais fracos, dos oprimidos e dos invadidos, mesmo que os invasores apelem por ideais democráticos.
Nessa perspectiva, a mediação da igreja responde ao grito por justiça e combate às constantes causas dos conflitos. A Igreja trabalha com a ideia de que o primeiro olhar, para agir em qualquer conflito, está concentrado na maneira de agir de Jesus, já que os Evangelhos acenam para o facto de que Cristo tenha vivido em uma sociedade terrivelmente conflituosa.
Os laços da Igreja Católica com Moçambique remontam à época dos Descobrimentos; não só, ela é a única religião com expressão territorial . Aquando da sua visita ao país, entre os dias 16 e 18 Setembro de 1988, o Santo Padre, recordando a força desses mesmos laços, mostrou-se preocupado com a situação do conflito e salientou a necessidade de a Igreja contribuir para a sua resolução – sempre, no entanto, respeitando o que é de César: A história conhecida de Moçambique anda intimamente ligada à presença da Igreja. Mesmo com limitações, ela quis e quer contribuir para tecer essa história. Por sua natureza, a Igreja respeita as instituições e a sua autoridade (cf. Ped. 2, 13 ss.). Ela não aspira a gerir os assuntos temporais nem aspira a substituir-se a uma determinada política. A sua contribuição específica é sempre a de fortalecer as bases espirituais e morais da sociedade: é um serviço que visa consciencializar e formar, esclarecendo e apontando para os imperativos éticos e, se houver necessidade, denunciando os desvios e os atropelos à dignidade do homem
A mensagem de João Paulo II ia no sentido de que todos abraçassem a causa do homem ; seria exactamente este o espírito que a Comunidade de Santo Egídio assumiria nas negociações de paz e o mesmo actualmente a abraçar a Igreja da região austral.
A Igreja Católica pode e deve ser central na solução negociada para os conflitos em Cabo Delgado, tanto na acção de levar os conflituantes à mesa de negociações, como no seu papel de mediadora nas próprias negociações à semelhança do que fez em Roma, via Comunidade Católica de Santo Egídio, cujos laços com Moçambique remontam ao ano de 1976. A Igreja pode continuar a desempenhar um papel construtivo de apoio à democratização e tornar-se o principal actor da sociedade civil, apesar da instabilidade político-militar.
O apelo da Igreja foi sempre o mesmo de convocar as pessoas para a paz. Assim defende a Conferência Episcopal de Moçambique, na Carta pastoral emitida no fim de uma sessão, que teve lugar em Maputo a 16, de junho de 2020: “A continuação deste desumano sofrimento é inaceitável e frustra o sonho de sermos uma nação de paz, concórdia e independente, justa e solidária, por esta razão, devemos unir todos os esforços para encontrar os caminhos de solução a esta desgraça, não confiando unicamente no uso da força militar”.
Segundo os Bispos, as incursões terroristas semeiam destruições e mortes violentas de crianças, mulheres e homens inocentes e pessoas de boa vontade, como foi o caso de uma irmã assassinada num ataque à Missão Católica de Chipene, na Diocese de Nacala.
Algumas propostas concretas de acção dessa linha de trabalho seriam: fortalecer e promover mediações comunitárias e diálogos inter-religiosos, inter-étnicos e multiactores para avançar na finalização do conflito armado; desenvolver processos reflexivos e propostas para a paz mediante grupos de discussão ou fóruns comunitários, com a participação efectiva de jovens e mulheres; estimular conversas com outras redes comunitárias e movimentos sociais de outros lugares do mundo que tenham experiência na construção local para a paz; realizar treinos ou processos formativos e de empoderamento comunitário sobre temas de paz; articular conversas projectivas e proactivas para acordar um plano de acção pela paz definido pelas organizações sociais e comunitárias de Cabo Delgado. É fundamental que a comunidade internacional e as autoridades nacionais considerem adequadamente estas outras formas de alcançar a paz em Cabo Delgado.
Fortalecer instrumentos, mecanismos e ferramentas de convivência entre comunidades deslocadas e comunidades de acolhimento para mitigar os riscos de conflito. A convivência é um elemento fundamental para a construção da paz e coesão social. Num contexto marcado pela pobreza e desigualdade, com dificuldades históricas e profundas no acesso a recursos, bens e serviços essenciais para a vida, os conflitos pelo acesso a esses recursos são fenómenos comuns. É necessário investir em mecanismos de diálogo e estratégias de trabalho comunitário para mitigar tais desigualdades.
Articular uma linha de trabalho de pesquisa-acção de memória e construção local para a paz com uma metodologia situada, participativa e descolonial. As custosas operações militares para a manutenção da paz não estão a contribuir além da contenção da violência directa nas áreas afetacdas, portanto, é necessário abrir outras vias para avançar na finalização negociada deste conflito armado e trabalhar na construção local para a paz. As propostas comunitárias de negociação dialogada para pôr fim ao conflito, a construção de uma memória compartilhada e a busca pela verdade, a articulação da convivência pacífica, da coesão social e de uma cultura sustentada para a paz em Cabo Delgado devem estar na agenda.
A Igreja, na região austral, debate-se com um profundo problema que é a justiça e a paz como caminhos para a promoção e valorização efectiva da dignidade do ser humano. Ou seja, se por um lado, no passado a Igreja esteve empenhada na primeira evangelização, transmissão da fé, mesmo em épocas menos claras da sua acção, na luta pelo fim da guerra civil, na construção e edificação das comunidades cristãs, hoje, a Igreja é chamada, por outro lado, a contribuir, com a sua voz profética, para uma sociedade mais justa, mais igual, onde todos possam ter o necessário para a subsistência e onde todos convivam como verdadeiros filhos de Deus e da mesma Nação. Por isso, tal como a sociedade tem o dever de zelar e prover às necessidades dos seus filhos, a Igreja é, igualmente, chamada, em virtude da sua identidade e missão, a lutar pelo bem-estar de cada membro da sociedade, a educar para o respeito pela vida, pela cultura e pela dignidade do ser humano promover mecanismos de ajudar a sociedade a ser mais democrática e tolerante. E isto se faz mais urgnte em Cabo Delgado, olhando para a situação actual em que está mergulhada esta parcela de Moçambique.