Introdução
Aquando da publicação da declaração, houve uma reação muito variada e em alguns casos considerada desproporcionada, com vários bispos e cardeais opondo-se com certa virulência a algumas propostas contidas na Declaração, em particular, quando se trata de abençoar casais homoafectivos, embora a Declaração verse, sobretudo, sobre as diferentes bênçãos e o seu significado pastoral (n. 28).
Com efeito, o documento, ao aprofundar o tema das bênçãos, distingue entre as bênçãos rituais e litúrgicas e as bênçãos espontâneas, que se assemelham mais a gestos de devoção popular, e é precisamente assim que se abre a possibilidade de acolher aqueles que não vivem de acordo com as normas da doutrina moral cristã, mas pedem humildemente para serem abençoados.
É precisamente o apelo à devoção popular que leva a olhar para a recepção do documento no meio do povo simples que não percebe todos os contornos linguísticos e as diferenças de compreensão teológica que são convocadas no texto, que nos permite verificar as consequências não esperadas .
Este pano de fundo ajuda a perceber como a solicitude pastoral justifica, de certo modo, as mais diversas reações à Declaração e, ao mesmo tempo, permite uma reflexão sobre o «não esperado» que toca algumas notas eclesiológicas. Antes de mais, identifiquemos a novidade da Declaração e o mal-estar que provoca:
- A novidade presente na declaração: valorização do «Sensus Fidei»
Distinguir duas formas diferentes de bênção: «bênçãos litúrgicas ou ritualizadas» e «bênçãos espontâneas ou pastorais». O Dicastério para a Doutrina da Fé diz, na apresentação do documento, que «o valor deste documento é […] aquele de oferecer uma contribuição específica e inovativa ao significado pastoral das bênçãos, que permite ampliar e enriquecer sua compreensão clássica, estreitamente ligada a uma perspectiva litúrgica». Esta «reflexão teológica, baseada sobre a visão pastoral do Papa Francisco, implica um verdadeiro desenvolvimento a respeito de quanto foi dito sobre as bênçãos no Magistério e nos textos oficiais da Igreja».
Trata-se de valorizar a devoção popular, a fé do povo de Deus, que se abre ao seu Deus para além da sua consciência de pecado e de sua pequenez. É o apelo ao «sensus fidei», à capacidade pessoal do crente de fazer um discernimento justo em matéria de fé, sobre questões irregulares da nossa forma de crer. Ora, no caso da Igreja que está em África, foi justamente o «sensus fidei» que ditou os vários pronunciamentos em torno deste documento. A sensibilidade pastoral dos pastores justificou a carta do SECAM que diz: “Não há bênçãos para casais homossexuais nas Igrejas em África”, o que parece admitir-se que para os outros casos de casais irregulares a bênção seria possível. Esta nota amplia a compreensão da universalidade da Igreja na sua pluralidade de contextos e de respostas pastorais.
- A Igreja Universal, diversa e plural: unidade na pluralidade
Dizer que em África não há bênção para casais homoafectivos, enquanto em outros continentes são autorizadas bênçãos para estas pessoas, parece tocar e esclarecer, mais, ainda, que a unidade não é uniformidade. Mais profundamente, toma à sério a “pastoral popular” e valoriza o sentido da fé do Povo de Deus, que nos mais diversos contextos percebe as consequências práticas da sua fé e deve ser respeitado no caminho de compreensão das exigências do Evangelho que está fazendo. Cabe aos pastores, guiados pela prudência, julgar a pertinência de práticas que não são espontaneamente compreensíveis para o povo e que podem causar escândalo e ferir a fé do povo simples.
Um dos desafios que a realidade africana impõe à teologia é a questão epistemológica. A teologia tem como objetivo interpretar a fé em Jesus Cristo para as comunidades de África e isso não é possível sem o cuidado de um olhar contextual que exige abandonar o “asilo epistemológico” de culturas e filosofias alheias (GIBELLINE, 2012, p. 463). Aqui vale lembrar a relação profunda entre religião e cultura e que os intercâmbios entre ambas são constantes, fluentes e subterrâneos e visíveis na fé popular. A cultura pode ser entendida como sistema organizador do mundo natural que gesta a religião, mas a religião é, igualmente, um sistema organizador do mundo e é assim que uma fornece sentido à outra e podemos afirmar que a religião cria a cultura. A este propósito, Paul Tillich explica:
A religião, considerada preocupação suprema, é a substância que dá sentido à cultura, e a cultura, por sua vez, é a totalidade das formas que expressam as preocupações básicas da religião. Em resumo: religião é a substância da cultura e a cultura é a forma da religião. Com isso evita-se o dualismo entre religião e cultura. Cada ato religioso, não apenas da religião organizada, mas também dos mais íntimos movimentos da alma, é formado culturalmente (TILLICH, 2009, p. 83).
Assim, a recepção diferenciada da Declaração Fiducia Supplicans, é inesperada e amplia a percepção da beleza de uma Igreja que se abre às diferentes maneiras de viver e expressar a fé. Toda a reflexão teológica e eclesiológica move-se em uma racionalidade que nasce da experiência da fé vivida e veiculada nas tradições continuamente atualizadas por uma comunidade de fé e de pertença (DV, 8). Por isso, a eclesiologia e a teologia africanas deverão alimentar o seu saber na experiência de fé dos seus povos, permitindo que em sua pluralidade, a experiência pessoal e comunitária balbucie a verdade que conduz os demais à experiência do mistério de Deus. Trata-se, ainda, de comunicar na linguagem própria do seu interlocutor, a linguagem de uma humanidade situada e marcada por limitações e possibilidades históricas, espaciais e temporais e de modo plural (Heb. 1,1) a riqueza doada pela fé no Deus de Jesus Cristo.
Conclusão
A declaração Fiducia Supplicans, em África, trouxe à tona a necessidade de pensar a Igreja a partir do contexto eclesial e do “sensus fidei”, do modo como os pequenos entendem e vivem a sua fé. Compreender como a fé gera uma cultura e uma alimenta a outra. Tudo o que fere a vivência coerente da fé provoca um distúrbio cultural. Paralelamente a este aspecto, a declaração Fiducia Supplicans ajudou a ampliar a compreensão da universalidade da Igreja, enquanto diversidade de expressão na unidade da fé.
Obrigada pela atenção dispensada!
Notas bibliográficas
- Declaração Fiducia Supplicans, de 18 de Dezembro 2023, do Dicastério para a Doutrina da Fé,
- GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. 3° edição, S. Paulo, Edições Loyola, 2012.
- THILLICH, Paul. Teologia da Cultura. Paulo, Fonte Editorial, 2009.