A declaração “Fiducia supplicans” (confiança suplicante), do Dicastério para a Doutrina da Fé, assinada pelo seu Prefeito, o Cardeal Fernández – e aprovada pelo Papa, foi divulgada a 18 de Dezembro de 2023. O documento aprofunda o tema das bênçãos, distinguindo entre as bênçãos rituais e litúrgicas e as bênçãos espontâneas, que se assemelham mais a gestos de devoção popular.
De recordar que em 2021, o Dicastério emitiu um documento conhecido como “responsum”, respondendo à questão posta por um grupo de Cardeais (dúbia) de saber se a igreja tem “o poder de dar a bênção às uniões de pessoas do mesmo sexo”. A sua resposta foi “negativa” — e a fundamentação dessa resposta foi apresentada numa “nota explicativa”.
Ela estabelece uma série de esclarecimentos e reformas sobre as chamadas “relações irregulares”, ou seja, aquelas que estabeleceram um vínculo monogâmico e afectivo que perdura no tempo e que não contraíram matrimónio, sem fazer quaisquer alterações nesta instituição. O casamento na Igreja Católica ainda é entendido apenas como a união entre um homem e uma mulher, proibindo todo tipo de casamento que não seja heterossexual e monogâmico, como casamento entre pessoas do mesmo sexo, bem como qualquer tipo de bigamia e poligamia heterossexual ou bissexual.
O documento tem natureza de uma declaração e não de uma lei, de uma encíclica; daí a sua flexibilidade a cada realidade da Igreja particular. Portanto, não se aplica aqui o brocardo latino “Roma locuta causa finita”.
A partir do princípio das bênçãos espontâneas, ficou definido que, diante do pedido de duas pessoas para serem abençoadas, mesmo que sua condição de casal seja “irregular”, será possível para o ministro ordenado consentir. Mas sem que esse gesto de proximidade pastoral contenha elementos minimamente semelhantes a um rito matrimonial.
A Igreja Católica continua a ser clara na sua doutrina e distingue objectivamente aqueles que podem casar-se com direito à cerimónia, daqueles que só podem ter uma simples bênção de um padre. O Vaticano é contra o casamento religioso entre pessoas do mesmo sexo. Se desta “nova” posição do Papa Francisco se esperava uma nova abertura para o tema em questão, ao ler com atenção o documento percebe-se que nada muda.
O valor deste documento, porém, é oferecer uma contribuição específica e inovadora ao significado pastoral das bênçãos, que nos permite ampliar e enriquecer a compreensão clássica estritamente ligada a uma perspectiva litúrgica. Trata- se de evitar “algo que não está sendo reconhecido como casamento”. Portanto, são inadmissíveis ritos e orações que possam criar confusão entre o que é constitutivo do matrimónio, como «união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta à geração de filhos», e o que o contradiz. Esta crença é bem fundamentada sobre a perene doutrina Católica do casamento
Esta “Fiducia supplicans” pode ser lida como uma tentativa de calar aqueles que desejam ver a sua união abençoada, da mesma maneira como é a de outros casais.
A leitura dos cânones 1055 a 1165 ajuda-nos a compreender melhor a natureza do matrimónio e a seriedade como a Igreja trata o assunto.
Estrutura do Documento
A “Fiducia supplicans” começa com uma introdução do Prefeito, Cardeal Victor Fernández, que aprofunda o “significado pastoral das bênçãos” por meio de uma reflexão teológica “baseada na visão pastoral do Papa Francisco”. Uma reflexão que “implica um verdadeiro desenvolvimento em relação ao que foi dito sobre as bênçãos” até agora, chegando a incluir a possibilidade “de abençoar casais em situação irregular e casais do mesmo sexo, sem validar oficialmente seu status ou modificar de qualquer forma o ensino perene da Igreja sobre o casamento”.
Conteúdo do Documento
Após os primeiros parágrafos (1-3), em que o pronunciamento anterior de 2021 é lembrado e agora ampliado, a declaração apresenta a bênção no sacramento do matrimónio (parágrafos 4-6), declarando “inadmissíveis ritos e orações que possam criar confusão entre o que é constitutivo do matrimónio” e “o que o contradiz”, a fim de evitar reconhecer de alguma forma “como matrimónio algo que não é”. Reitera-se que, de acordo com a “doutrina católica perene”, somente as relações sexuais dentro do casamento entre um homem e uma mulher são consideradas lícitas.
Um segundo grande capítulo do documento (parágrafos 7-30) analisa o significado das várias bênçãos, que têm como destino pessoas, objectos de devoção, lugares de vida. O documento lembra que, “de um ponto de vista estritamente litúrgico”, a bênção exige que o que é abençoado “esteja em conformidade com a vontade de Deus, expressa nos ensinamentos da Igreja”. Quando, com um rito litúrgico específico, “se invoca uma bênção sobre certas relações humanas”, é necessário que “o que é abençoado possa corresponder aos desígnios de Deus inscritos na Criação” (11). Portanto, a Igreja não tem o poder de conferir uma bênção litúrgica a casais irregulares ou do mesmo sexo. Mas é preciso evitar o risco de reduzir o significado das bênçãos apenas a esse ponto de vista, exigindo para uma simples bênção “as mesmas condições morais que são exigidas para a recepção dos sacramentos” (12).
Depois de analisar as bênçãos nas Escrituras, a declaração oferece um entendimento teológico-pastoral. Quem pede uma bênção “se mostra necessitado da presença salvadora de Deus em sua história”, porque expressa “um pedido de ajuda de Deus, uma súplica por uma vida melhor” (21). Esse pedido deve ser acolhido e valorizado “fora de uma estrutura litúrgica”, quando se encontra “em uma esfera de maior espontaneidade e liberdade” (23). Olhando para elas da perspectiva da piedade popular, “as bênçãos devem ser valorizadas como actos de devoção”. Para conferi-las, portanto, não há necessidade de exigir “perfeição moral prévia” como pré-condição.
Discernimento que se exige
Aprofundando essa distinção, com base na resposta do Papa Francisco às dúvidas dos Cardeais, que pediam um discernimento sobre a possibilidade de “formas de bênção, solicitadas por uma ou mais pessoas, que não transmitam uma concepção errônea do matrimónio” (26); o documento afirma que esse tipo de bênção “é oferecido a todos, sem pedir nada, fazendo com que as pessoas sintam que continuam abençoadas apesar de seus erros e que “o Pai celeste continua a querer o seu bem e a esperar que elas finalmente se abram ao bem” (27).
Existem “várias ocasiões em que as pessoas vêm espontaneamente pedir uma bênção, seja em peregrinações, em santuários, ou mesmo na rua quando encontram um sacerdote”, e tais bênçãos “são dirigidas a todos, ninguém pode ser excluído” (28). Portanto, permanecendo proibido de activar “procedimentos ou ritos” para esses casos, o ministro ordenado pode unir-se à oração daquelas pessoas que “embora em uma união que de modo algum pode ser comparada ao matrimónio, desejam confiar-se ao Senhor e à sua misericórdia, invocar a sua ajuda, ser guiados a uma maior compreensão do seu plano de amor e de verdade” (30).
O terceiro capítulo da declaração (parágrafos 31-41), abre a possibilidade dessas bênçãos, que representam um gesto para aqueles que “reconhecendo-se indigentes e necessitados de sua ajuda, não reivindicam a legitimidade de seu próprio status, mas imploram que tudo o que é verdadeiro, bom e humanamente válido em suas vidas e relacionamentos seja investido, curado e elevado pela presença do Espírito Santo” (31). Essas bênçãos não devem ser normalizadas, mas confiadas ao “discernimento prático em uma situação particular” (37). O casal pode ser abençoado, mas não a união. Na “breve oração que pode preceder essa bênção espontânea, o ministro ordenado pode pedir paz, saúde, espírito de paciência, diálogo e ajuda mútua, bem como a luz e a força de Deus para poder cumprir plenamente a sua vontade” (38). Também é esclarecido que, para evitar “qualquer forma de confusão e escândalo”, quando um casal irregular ou do mesmo sexo pede uma bênção,
- “Ela nunca será realizada ao mesmo tempo que os ritos civis de união ou mesmo em conexão com eles.
- Nem mesmo com as roupas, os gestos ou as palavras próprias de um casamento” (39). Esse tipo de bênção “pode encontrar seu lugar em outros contextos, como uma visita a um santuário, um encontro com um sacerdote, uma oração recitada em um grupo ou durante uma peregrinação” (40).
Por fim, o quarto capítulo (parágrafos 42-45) nos lembra que “mesmo quando o relacionamento com Deus está obscurecido pelo pecado, sempre é possível pedir uma bênção, estendendo a mão a Ele” e desejá-la “pode ser o melhor possível em algumas situações” (43). Esta declaração, no fundo procura destacar a misericórdia de Deus que não tem limites e quer fazer chegar a todos a sua bençâo paterna, independentemente da condição em que a pessoa se encontra.