CAMINHAR SOBRE AS ÁGUAS
(leia: 1Reis 19,9-13; Romanos 9,1-5; Mateus 14,22-33)
Elias é figura emblemática do profetismo em Israel. O profeta ficou na memória do povo pelo seu zelo em defender a fé em Javé, Deus da Aliança, numa altura em que o coração da gente vacilava entre Javé e os Baal, deuses pagãos da fecundidade (por isso, atraentes).
No seu zelo, Elias exterminou quatrocentos profetas de Baal, provocando a ira da rainha Jezabel que os patrocinava. A 1ª leitura de hoje fala desse momento de crise na vida do profeta. Sem defesa, tem que fugir, a ponto de querer morrer. Mas ainda lhe sobra um pouco de fé: busca força em Deus, sobe ao monte Horeb (Sinai), esperando que Javé manifeste o seu poder com estrondos, como com Moisés.
Mas a resposta de Deus chega como uma “brisa suave”. O profeta deve converter-se do seu zelo arrogante e violento…
Como Elias, também os discípulos de Jesus são postos à prova.
Sua pequena barca é açoitada pelas ondas, no meio do mar.
É noite. Sentem medo. O Mestre ficou para trás. Após ter multiplicado os pães para a multidão, Jesus deixou-se ficar, para se despedir da gente, prolongar no abraço o dom feito no pão.
Mas também para se retirar, subir ao monte: estar a sós com o Pai, sentir-se abraçado pelo Abbá. Precisa destes momentos, para reafirmar que o Fundamento do seu ‘Ser’ está no Pai;
não nos milagres e curas que realiza, não em qualquer sucesso. Para não cair na tentação de buscar aplausos, como o ego pede.Porém, há uma terceira razão pela qual o Mestre fica para trás.
Mateus diz que «Jesus obrigou os discípulos a subir para o barco e a esperá-lo na outra margem». Por que razão os «obrigou»?
Os discípulos viveram um momento alto com a multiplicação dos pães. Fizeram a experiência do «reino de Deus» que germina com Jesus: onde as pessoas são amadas na sua fragilidade; onde o que se tem (mesmo que apenas cinco pães e dois peixes) é posto à disposição, para o bem de todos. Agora os discípulos devem levar esse sonho do «reino de Deus» à «outra margem». Nos evangelhos, os discípulos entram em crise quando devem passar para a «outra margem», isto é, para terra desconhecida: sempre que devem enfrentar realidades e desafios novos. De resto, isto acontece um pouco com todos nós. Tendemos a manter-nos em nossos territórios seguros, nossas ‘zonas de conforto’ (pastorais, espirituais, profissionais, relacionais, etc.) Resistimos a ir para a «outra margem», temos medo de nos expor a realidades novas, desafiadoras; a encontros imprevistos… Mesmo como Igreja, receamos os reptos que o mundo constantemente nos lança.
Assim foi no tempo em que Mateus escreveu o seu evangelho: no meio em que viviam, as comunidades cristãs enfrentavam ventos contrários. Sem a presença física de Jesus, as comunidades sentiam-se inseguras, como uma frágil barca, num mar encrespado. Como os discípulos de Jesus e os discípulos das comunidades de Mateus, também as discípulas e discípulos de hoje nos sentimos muitas vezes
inseguros, face aos ventos do mundo em que vivemos. As nossas opções evangélicas podem ser incómodas para uns, incompreendidas por outros. Podemos sentir-nos marginalizados, achar que contamos pouco. E perguntamo-nos: vale a pena continuar por esse caminho?
Continuar a viver de acordo com a proposta de Cristo Jesus? Ou é melhor adoptar os padrões sociais, para não ‘perdermos’ tudo?…
O risco é entrar em depressão, como Elias. Ou ser tomados pelo medo,
como os discípulos. É estranho, mas o homem pós-moderno vive assolado por tantos medos! A pandemia da Covid apenas veio tornar isso manifesto. O medo da morte é o grau mais alto de vários medos que nos atormentam: medo de não ter o suficiente, de não contar, medo de fracassar, de ser excluído… Em vários ambientes, mesmo entre gente culta, há ainda o medo de forças mágicas (‘feitiço’).
E assim é fácil tornar-se prisioneiro do medo e seus parentes próximos: ansiedade, angústia, depressão, agressividade. O medo é mau conselheiro: agiganta os problemas, paralisa, imagina o pior, vê o que não existe.
Os discípulos, no meio da tormenta, vêm, em Jesus que se aproxima,
um «fantasma». Quantos fantasmas imaginários habitam o nosso espírito!…
Mas há ainda um outro risco, face às dificuldades de o mundo aceitar o Evangelho: muitos cristãos caem na tentação de pretender que Deus opere curas e prodígios, para se sentirem mais seguros diante dos outros. Afinal, a mesma tentação de Pedro, açoitado pela tormenta: «Se és tu, Senhor, manda-me ir ter contigo sobre as águas»: demonstra-me com um milagre que estás aqui, no meio da tempestade.
Aos discípulos amedrontados — de ontem e de hoje — o Mestre diz: «Tende confiança. Sou eu. Não temais!». («Não temais!» é uma das afirmações mais presentes na bíblia.) O Mestre continua a dizer: Quando sofreres antipatia ou marginalização pela tua fidelidade ao Evangelho, não temas. Quando as ondas das dificuldades e da dúvida se abaterem sobre ti, não deseperes. Eu estou em ti. Também fui rejeitado, provado no sofrimento e na dúvida. E, com a força do Pai,
venci. Tem confiança em mim! Tem paz em mim! E então,… poderás «caminhar sobre as águas», não afundar nas tormentas…
Mas, para isso, será necessário saber peregrinar interiormente, subir regularmente ao ‘monte’ (estar com Deus, estar em Deus), como Elias, como Cristo Jesus. E descobrir que é na brisa da confiança e do abandono que Deus se faz presente; não no estrondo do poder ou dos milagres. Outras vezes, será preciso, como Pedro, ressurgir humildemente das águas onde se afundam as nossas pretensões e
medos, e pôr-nos novamente a seguir o Mestre, servindo a todos.
(João Pedro Fernandes, CSsR)