4QuarA’2023.
CEGO É QUEM PENSA QUE VÊ
(leia: 1Samuel 16,1-13; Efésios 5,8-14; João 9,1-41)
Prosseguindo o nosso caminho quaresmal, em companhia
do Mestre, o evangelista João faz-nos cruzar hoje com um
cego de nascença. Não sigamos adiante apressados,
indiferentes a esse pobre homem. Nem façamos como
os discípulos de Jesus que, aparentemente, se preocupam,
questionando: «Foi ele quem pecou, ou os seus pais?».
O que fazem é transformar o cego num caso teológico abstracto.
Preocupam-se mais com a discussão doutrinal que com a pessoa.
(O que acontece muitas vezes na Igreja, infelizmente.)
O Mestre recusa essa visão fechada, que cega a compreensão.
Nem o cego, nem os seus pais pecaram. A sua condição é uma
oportunidade «para que as obras de Deus se manifestem».
Deus se coloca do lado dos fracos, opera a nosso favor! Jesus
‘viu’ —com os olhos, mas sobretudo com o coração— aquele
homem. Para a multidão, ele era apenas um ‘coitado’; aos
olhos de Jesus, é uma pessoa amada. E opera em seu favor:
devolve-lhe a vista e a dignidade.
A cura do cego produz uma outra discussão… doutrinal!
Entram em cena os religiosos mais praticantes e convictos
de Israel: os fariseus. Questionam: ‘quem o curou?’, ‘de que
modo?’, ‘e em dia de sábado?!!!’… ‘Quem assim o fez só pode
ser um pecador: não observa o preceito divino do sábado!’
De novo, o bem da pessoa passa a segundo plano. Interessa
a pureza doutrinal, a ortodoxia! Os religiosos praticantes
corremos muitas vezes o risco de separarmos o Deus
da doutrina do Deus da vida. Preocupamo-nos mais
com o pecado que com o sofrimento humano.
Muitas pregações e práticas religiosas continuam ainda a
passar a ideia de um Deus fiscal, mais preocupado com
o cumprimento estrito de preceitos, que com a felicidade
dos seus filhos. Um Deus mais propenso a castigar, que
a socorrer. O Deus revelado por Jesus Cristo tem outra face!
É um Pai compassivo, solidário connosco. Que luta ao nosso
lado contra o mal. Que faz a vida recomeçar. Que faz festa
só porque o filho volta a casa, nem ouve a confissão dos
seus pecados. Um Deus que rejubila pelo mudo que fala,
o paralítico que anda, o cego que recupera a vista…
E o cego da história que João nos narra tem tanto para
nos fazer… ver! Ele vai progredindo, passo a passo: primeiro
recupera a vista, depois a honra, enfim, a fé. Como a samaritana
do domingo passado (duas pessoas marginalizadas!), o cego
torna-se em modelo do discípulo. Ele vai crescendo na
compreensão de quem é Jesus: no início, apenas um homem,
depois um profeta, por fim, o Filho do homem, diante
do qual se ajoelha (é Deus, portanto). A fé é um caminho
de progressiva iluminação. Percorre-se passo a passo,
num combate tu a tu, com humildade e perseverança.
O cego é agora outra pessoa. Libertou-se do sentimento
de ‘coitado’. Ganhou dignidade e força. Responde, discute,
argumenta. Perdeu o medo, que os seus pais continuam a ter;
medo do juízo dos outros. Renasceu! Quando Jesus nos
encontra, ou, melhor, quando nos deixamos encontrar
por Jesus (sem máscaras nem defesas), oferecemos a nós
mesmos uma oportunidade incrível de renascermos.
Ganhamos luz! Vemos com ‘outros olhos’, em profundidade.
Afinal, quem é o verdadeiro cego? Esta é a questão fundamental
que o evangelista deixa no ar. Os fariseus pensavam que viam,
achavam-se os donos da verdade. Conheciam e cumpriam a lei
de Deus como ninguém, ‘viam’ o querer de Deus. Nada tinham
a aprender — nem de Jesus, nem dos pobres, tanto menos de
um cego ‘coitado’: «Tu nasceste coberto de pecados,
e queres dar-nos lições?» (Jo 9,34).
A arrogância, a autossuficiência, o comodismo, cegam-nos
o olhar. Cego é quem pensa ver, saber tudo. Quem não precisa
questionar-se, rever as suas posições. Cego é quem não é
humilde para se deixar iluminar pelos encontros da vida,
por onde Deus passa. Cega é a Igreja, quando põe mais
ênfase na doutrina e no cumprimento correcto dos rituais,
do que na mensagem e na prática de Jesus Cristo. Cega é a
Igreja, quando não vai para a rua, ao encontro do ‘mundo
ferido’, como o seu Mestre. Quando não se põe ao lado dos
que não contam, para defender os seus direitos, face aos
poderosos e prepotentes.
Somos cegos ou vemos? O que vemos? Como vemos?
Só o Mestre da Vida nos pode fazer ‘ver’. Ver a nós mesmos,
como somos; ver cada pessoa, com dignidade, respeito,
compaixão. Só o Mestre Jesus nos pode abrir o olhar, dar-nos
a Luz. Contanto que sejamos humildes, que nos deixemos
interpelar, que queiramos aprender sempre com a vida
e com os outros.
«Desperta, tu que dormes, levanta-te de entre os mortos,
e Cristo brilhará sobre ti!» (Ef 5,14 – da 2ª leitura).
«Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor.
Procedei como filhos da luz. O fruto da luz está em toda
a espécie de bondade, justiça e verdade» (Ef 5,8-9).
(João Pedro Fernandes, CSsR)