Introdução
Porque é que a Igreja se interessa nas questões sócio-políticas? É uma pergunta colocada por alguns sectores da sociedade. Há quem até diz o lugar da Igreja é na sacristia, por quê é que a Igreja se mete na política? Porém, é sintomático que, quando há algum conflito social ou político, ser frequente ouvir a dizer-se ‘as igrejas devem ajudar na pacificação e reconciliação da sociedade’. Daí a necessidade de uma reflexão procurando ver se a Bíblia, fundamento da nossa fé, de todo o ensinamento e ação dos cristãos, diz algo a respeito.
O que é Igreja
Na Constitutuição dogmática Lumen Gentium n. 4 encontra-se esta afirmação: «Assim a Igreja toda aparece como «um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo». Neste conceito de Igreja apresentado pelos Padres Conciliares do Vaticano II inspirados em S. Cipriano S. Cipriano, um padre da Igreja do Norte de África, na sua obra De orat. Dom. 23, fica claro que Igreja é assembleia dos convocados por Deus uno e trino. Por outras palavras Igreja é projecto de Deus. Fica igualmente claro que é constituída por pessoas. Porque Deus convoca pessoas, seres que ele criou à sua própria imagem e semelhança, as quais respondendo positivamente à sua convocação celebra com elas uma aliança, constitui-as seu povo e confia-as uma missão.
Toda a iniciativa divina é sempre em benefício do ser humano. Deus convocou os homens por amor e quer que eles vivam no seu amor e possam replicá-lo no mundo. Esta é a missão da Igreja. Portanto, Igreja é a visibilização da vontade salvífica de Deus.
Objecto da ação da Igreja
Do breve conceito acima exposto deduz-se que o objecto da Igreja é essencialmente homem e o homem todo, isto é, alma e corpo e todo o homem. É todo o homem porque a ação salvífica de Deus é universal, cabendo ao homem aceitá-la ou excluir-se dela.
O homem é espírito e carne. O espírito tem suas necessidades, que é mormente a sua relação com o Criador e a carne tem igualmente suas necessidades. É logico que se o objecto da Igreja é o homem, ela tem que se preocupar com toda a sua humanidade embora tenha um foco particular na dimensão espiritual.
Na sua Encíclica programática Redemptoris Hominis o Papa João Paulo II, deixa claro que o homem é caminho da Igreja. Pois na RH 14 ele afirma:
O homem, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social — no âmbito da própria família, no âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação, ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim no âmbito de toda a humanidade — este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: ele é a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção.
Portanto, para João Paulo II é o homem concreto com as suas quantro dimensões, a saber racional, intelectiva, pacional e volitiva e seu contexto que é o caminho da Igreja, noutras palavras é o objecto da Igreja, no sentido que a actividade da Igreja é ocupar-se do homem.
E prossegue, no mesmo número, realçando que
Sendo portanto este homem a via da Igreja, via da sua vida e experiência quotidianas, da sua missão e actividade, a Igreja do nosso tempo tem de estar, de maneira sempre renovada, bem ciente da ‘situação’ de tal homem. E mais: a Igreja deve estar bem ciente das suas possibilidades, que tomam sempre nova orientação e assim se manifestam; ela tem de estar bem ciente, ao mesmo tempo ainda, das ameaças que se apresentam contra o homem. Ela deve estar cônscia, outrossim, de tudo aquilo que parece ser contrário ao esforço para que ‘a vida humana se torne cada vez mais humana’e para que tudo aquilo que compõe esta mesma vida corresponda à verdadeira dignidade do homem. Numa palavra, a Igreja deve estar bem cônscia de tudo aquilo que é contrário a um tal processo de nobilitação da vida humana,
palavras que estão em sintonia com a Gaudium et Spes 38, e com o ensinamento de Paulo VI na sua Encíclica Populorum Progressio 21.E esta doutrina voltou a ser reiterada e ecoada na Mensagem do Papa Francisco assinada pelo Cardeal Secretário de Estado, por ocasião da XXXIV Edição do Meeting de Rimini para a Amizade entre os Povos em Agosto de 2013. Pois na mensagem pode-se ler
O homem é o caminho da Igreja: assim escrevia o beato João Paulo II na sua primeira Encíclica, Redemptor hominis(cf. n. 14). Esta verdade continua a ser válida também e sobretudo no nosso tempo em que a Igreja, num mundo cada vez mais globalizado e virtual, numa sociedade cada vez mais secularizada e desprovida de pontos de referência estáveis, é chamada a redescobrir a própria missão, concentrando-se no essencial e procurando novos caminhos para a evangelização.
Fundamentos bíblicos-teológicos da ação da Igreja
Antigo Testamento
O Papa Francisco coloca uma pergunta retórica, na sua mensagem acima referida:«Mas o que significa que o homem é «o caminho da Igreja»? E sobretudo, o que significa hoje para nós percorrer este caminho? Ele responde, na mesma mensagem, a partir do Antigo Testamento afirmando que
O homem é o caminho da Igreja porque é a senda percorrida precisamente por Deus. Desde os primórdios da humanidade, depois do pecado original, Deus põe-se à procura do homem. «Onde estás?» — pergunta a Adão que se esconde no jardim (Gn3, 9). Esta pergunta, que se encontra no início do Livro do Génesis e que não deixa de ressoar ao longo de toda a Bíblia e em todos os momentos da história que Deus, ao longo dos milénios, construiu com a humanidade, alcança na encarnação do Filho a sua expressão mais alta.
As Escrituras testamunham com muita clareza a preocupação de Deus para com o homem. Durante o sofrimento do povo de Israel no Egipto, o Senhor não ficou indiferente. Suscitou Moisés para a libertação do seu povo. Quando o povo, durante o Êxodo, sentiu fome enviou codornizes e mana, quando sofria de mordeduras de serpentes mandou Moisés fazer a serpente de bronze.
Para além destas ações que testemunham a preocupação de Deus para com o seu povo, há passagens que exprimem o sofrimento de Deus perante a vida difícil do seu povo como se pode ler
Então o SENHOR continuou: — Certamente vi a aflição do meu povo, que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus feitores. Conheço o sofrimento do meu povo. Por isso desci a fim de livrá-lo das mãos dos egípcios e para fazê-lo sair daquela terra e levá-lo para uma terra boa e ampla, terra que mana leite e mel; o lugar do cananeu, do heteu, do amorreu, do ferezeu, do heveu e do jebuseu. Pois o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo» (Ex 3,7-14). O sofrimento do povo foi tão grande que obrigou Deus descer para reverter a situação.
Portanto, sendo Igreja obra de Deus para perpetuar a sua ação salvifica no mundo, não pode ficar indiferente ao sofrimento dos homens, se quiser ser fiel a missão para qual foi fundada.
Novo Testamento
A incarnação do Verbo é Deus que desce para que o homem entre no mundo de Deus. A Incarnação do Verbo é o culmine dessa preocupação de Deus para com o homem. Quando Deus decidiu assumir a carne humana foi em benificio do próprio homem.
A Igreja é corpo de Cristo e Cristo é a cabeça e não tem outra missão senão a de continuar a obra do seu fundador, Cristo. O apostolado de Jesus esteve focalizado essencialmente na libertação do homem todo, luta contra estruturas de opressão para promover a dignidade do homem. São testemunhas desta afirmação as suas próprias palavras na Sagrada Escritura, “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu para trazer as boas-novas aos pobres. Ele me enviou para anunciar que os cativos serão soltos, os cegos verão, os oprimidos serão libertos, e que é chegado o tempo do favor do Senhor” (Lc 4,18-22). Não poupou as estururas do seu tempo, pois teceu duras críticas às estruturas do seu tempo, sempre em prol da pessoa humna e particularmente os pobres marginalizados e os sem voz. A fim de que a dignidade humna fosse salvaguardada.
Jesus curou, expulsou espíritos impuros, e deu comida aos que lhe escutavam. Teve que multiplicar pães e peixes quando se apercebeu que os seus ouvintes corriam o risco de desfaceler. Ele estava consciente que «Não se prega com estómago vazio nem a estómagos vazios». E ressuscitou os mortos. Estes factos ilustram que ele nunca esteve indiferente ao sofrimento dos seus contemporâneos e que o foco da sua missão era o bem da pessoa humana. Ele ensinou a rezar, cuidando desse modo da dimensão espiritual e também ele deu exemplo de oração. Portanto, o seu ministério foi cuidar da pessoa humana no seu todo.
Na escala de Maslow as necessidades espirituais, missão primordial da Igreja estão no topo. Na base estão as chamadas necessidades básicas, como base para o alcance de todas outras necessidades. Portanto, o apretrecho das necessidades espirituais carece da satisfação daquilo que está na base, daí a razão de a Igreja interessar-se também naquilo que não sendo assegurado a dimensão espiritual pode ficar seriamente afectada.
Os Padres do Vaticano II exprimem melhor o que aqui está sendo afirmado. Pois iniciam a Constituição Pastoral Gaudim et Spes com as seguintes palavras:
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história (GS 1).
O que aqui se pretende demonstrar vai na linha da visão de D. Felix, Bispo da Diocese de Governador Valadares, no Brasil, que sustenta que «A Igreja sente como seu dever e direito estar presente no campo da política, porque o cristianismo deve evangelizar a totalidade da existência humana. E ela assume sua missão no campo político, visando formar a consciência dos cristãos de que há uma relação intrínseca e indissociável entre vida e fé, promoção humana e missão religiosa».
Conclusão
Há ou não fundamentos biblico-teológicos que justificam o interesse da Igreja em matérias sócio-políticas? Do exposto a resposta é afirmativa. Deus quer o bem do homem todo, Igreja é continuação da ação salvífica de Deus, não pode ter outra missão senão cuidar do homem e das suas necessidades. Como sublinha o Papa Francisco na mesma mensagem «Esta é a tarefa da Igreja, e esta é a tarefa de cada cristão: servir o homem, indo à sua procura até aos meandros sociais e espirituais mais recônditos».
A Igreja quando se interessa e se preocupa com questões sócio-políticas, não está a intrometer-se, está simplesmente a procurar cumprir, cabalmente, a sua missão, não o fazendo estaria a omitir uma parte da sua missão.
Referência Bibliográfica
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dogmática Lumen Gentium.
————————–, Constituição Pastoral Gaudium et Spes.
JOÃO PAULO II, Carta Enciclica Redemptor Hominis.
Mensagem do Papa Francisco, assinada pelo Cardeal Secretário de Estado, por ocasião da XXXIV Edição do Meeting de Rímini para a Amizade entre os Povos (Rimini,18-24 de Agosto de 2013).
PAULO VI, Carta Encíclica Populorum Progressio.