CENTRO DIOCESANO
DE
DOCUMENTAÇÃO E ACTUALIZAÇÃO
(D. ARMANDO AMARAL DOS SANTOS)
Diocese de Benguela
5º Domingo do Páscoa – Ano A
7 de Maio 2023
‘Quanto a nós, vamos dedicar-nos totalmente à oração e ao ministério da palavra»
(cf. Actos 6,1-7)
Durante os domingos do Tempo Pascal, lêem-se todos os anos algumas páginas do Livro dos Actos dos Apóstolos no Ano A, as que se referem à vida dos cristãos imediatamente a seguir à ressurreição do Senhor. Assim, a primeira leitura do 2º Domingo da Páscoa (cf. Act 2, 42-47) ofereceu-nos a “fotografia” dos traços de uma comunidade cristã ideal: comunidade fraterna, preocupada em conhecer Jesus e a sua proposta de salvação, que se reúne para louvar o seu Senhor na oração e na Eucaristia, que vive na partilha, na doação e no serviço e que testemunha – com gestos concretos – a salvação que Jesus veio propor aos homens e ao mundo. Desta vez, a histórica e visível comunidade de Jerusalém (cf. Act 6, 1-7) aparece não como uma Igreja perfeita, puritana e angélica, mas como uma comunidade bem real e bem normal, formada por homens e mulheres, onde as tensões, os preconceitos, as rivalidades, as invejas e os ciúmes marcam a experiência diária de caminhada: ‘os helenistas começaram a queixar-se contra aqueles de língua hebraica, porque as suas viúvas eram negligenciadas na distribuição diária’ (cf. Act 6, 1).
A questão da caridade social não é de menor importância para a uma Igreja pobre para os pobres (cf. Evangelii gaudium, 198). Senão vejamos: Paulo VI compreendeu claramente como a questão social se tinha tornado mundial e hoje ela se tornou radicalmente antropológica, enquanto toca o próprio modo não só de conceber mas também de manipular (cf. Caritas in veritate, 13, 24, 75); figuras de Santos como Francisco de Assis, Inácio de Loyola, João de Deus, Camilo de Léllis, Vicente de Paulo, Luísa de Marillac, José B. Cottolengo, João Bosco, Luís Orione, Teresa de Calcutá — para citar apenas alguns nomes — permanecem modelos insignes de caridade social para todos os homens de boa vontade (cf. Deus caritas est, 40).
Por estas razões e outras não evocadas, desde os primórdios do seu caminho sinodal, a Igreja teve que enfrentar situações imprevistas, novas questões e emergências, às quais procurou dar uma resposta à luz da fé, deixando-se orientar pelo Espírito Santo. Para a Igreja de Cristo, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica; está, isto sim, implícita na fé cristológica, naquele Deus que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (cf. Evangelii gaudium, 198). A caridade para com os necessitados, a caridade que nos leva a amar o bem comum e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, afigura-se para a comunidade cristã de todos os tempos como um problema sério a enfrentar e resolver.
A comunidade de Jerusalém vive já deste os inícios a tensão entre o anúncio da Palavra e a prática da caridade que não desemboca em conflito entre grupos graças à presença do Espírito Santo. Os “hebreus” são cristãos de origem judaica, originários da Palestina, falam o aramaico, lêem a Escritura em hebraico. Embora convertidos pela pregação de Jesus e dos apóstolos, continuam, no entanto, muito apegados às suas tradições e têm, normalmente, um alto apreço pela Lei e pelas interpretações dos rabis. Por sua vez, os “helenistas” são cristãos de origem judaica, também, mas originários da “diáspora” israelita – isto é, das comunidades judaicas espalhadas por todo o império romano. Falam o grego, lêem as Escrituras em grego, são tolerantes e abertos à novidade. Tratando-se de dois grupos tão diversos – quer do ponto de vista cultural, quer do ponto de vista religioso, quer do ponto de vista social -, era natural que, mais tarde ou mais cedo, surgissem tensões e conflitos que exigem um discernimento apostólico.
Os Apóstolos encontram-se perante a exigência primária de anunciar a Palavra de Deus em conformidade com o mandato do Senhor, mas — embora esta seja a exigência primária da Igreja — consideram com igual seriedade o dever da caridade e da justiça, isto é, de assistir as viúvas e os pobres, de providenciar com amor às situações de necessidade em que se podem encontrar os irmãos e as irmãs, para responder ao mandato de Jesus: amai-vos uns aos outros, como Eu vos tenho amado (cf. Jo 15, 12.17). Portanto, as duas realidades que devem viver na Igreja — o anúncio da Palavra, o primado de Deus, e a caridade concreta, a justiça — estão a criar dificuldades e deve-se encontrar uma solução, para que ambas possam ter o seu lugar, a sua relação necessária. Por isso, os Apóstolos tomam a seguinte decisão: «Não convém deixarmos a Palavra de Deus, para servirmos às mesas. Irmãos, é melhor procurardes entre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria; confiar-lhes-emos essa tarefa. Quanto a nós, entregar-nos-emos assiduamente à oração e ao serviço da Palavra» (Act 6, 2-4).
Desde os primórdios da vida crista,ao ministério da Palavra está unida a prática da caridade. ‘A opção preferencial pelos pobres é «uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a tradição da Igreja’ (cf. Ecclesia in Africa, 44). Desde os inícios, a Igreja aparece como uma comunidade de serviço: os membros da comunidade cristã são convidados a seguir Jesus, que fez da sua vida uma entrega total ao serviço de Deus, ao serviço do Reino e ao serviço dos homens. A Igreja entende-se como organism vital que não deve apenas anunciar a Palavra, mas também realizar ‘a caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição (cf. Caritas in veritate, 1). Por isso, os Apóstolos estão já convencidos que os sete homens escolhidos (Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Parmenas e Nicolau, prosélito de Antioquia) não só devem gozar de boa reputação, mas devem ser homens cheios de Espírito Santo e de sabedoria, ou seja, não podem ser unicamente organizadores que sabem «fazer», mas devem «fazer» no espírito da fé com a luz de Deus, na sabedoria do coração, e portanto também a sua função — embora seja sobretudo prática — é todavia uma função espiritual. A caridade e a justiça não são apenas obras sociais, mas obras espirituais realizadas à luz do Espírito Santo.
Na verdade, o Evangelho deste 5º Domingo define a Igreja como uma comunidade de discípulos que seguem o “caminho” de Jesus – “caminho” de obediência ao Pai e de dom da vida aos irmãos: ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida’ (…) ‘Ninguém vai ao
Pai senão por Mim’ (…) ‘Quem Me vê, vê o Pai’, porque ‘Eu estou no Pai e o Pai está em Mim’ (cf. Jo 14,1-12). Quem quiser encontrar-se com Jesus e com o Pai, tem de sair do egoísmo e a fazer da sua vida um dom a Deus e aos homens. Não podemos perder-nos no activismo puro, mas devemos deixar-nos penetrar sempre na nossa actividade pela luz da Palavra de Deus e assim aprender a caridade autêntica, o serviço verdadeiro ao outro, que não tem necessidade de muitas coisas, mas carece sobretudo do afecto do nosso coração, da luz de Deus. Como bem o disse Bento XVI, a competência profissional é uma primeira e fundamental necessidade, mas por si só não basta. Todos os que trabalham nas instituições caritativas da Igreja devem distinguir-se pela dedicação ao outro com as atenções sugeridas pelo coração. Por isso, para tais agentes, além da preparação profissional, requer-se também e sobretudo a « formação do coração »: é preciso levá-los àquele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu íntimo ao outro de tal modo que, para eles, o amor do próximo já não seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor (cf. Gal 5, 6) (cf. Caritas in veritate, 31). Numa palavra, trata-se aqui da participação dos baptizados no sacerdócio de Cristo que passou toda a sua vida a fazer o bem, qual pedra viva rejeitada pelos construtores e que se tornou ‘pedra angular’, escolhida e preciosa aos olhos de Deus (cf. 1 Pedro 2,4-9)
Como podemos ver, a segunda leitura de todos os domingos de Páscoa (Ano A) é tirada da Primeira Carta de Pedro. O autor recorda aos destinatários da carta o exemplo de Cristo, que passou pela cruz, antes de chegar à ressurreição. Toda a carta é um convite à esperança: apesar dos sofrimentos do tempo presente, os crentes não devem desanimar, pois estão destinados a triunfar com Cristo. Pede-se-lhes que enfrentem corajosamente as adversidades e que viam com fidelidade o seu compromisso baptismal:
‘como pedras vivas, entrai na construção deste templo espiritual, para constituirdes um sacerdócio santo, destinado a oferecer sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo’ (cf. 1 Pedro 2,4-9).
O texto que nos é proposto este domingo (cf. 1 Pedro 2,4-9) faz parte de uma secção parenético-doutrinal (cf. 1 Pe 2,1-10). O autor da Primeira Carta de Pedro aplica a imagem da ‘pedra’ a Cristo e aos baptizados (vers. 4.5.6.7.8). Esta imagem leva-nos a Is 28,16, onde se refere ao novo Templo que o próprio Jahwéh, no futuro, vai construir e que será um sinal da intervenção de Deus em favor do seu Povo. Isaías anuncia que Deus vai colocar em Sião uma pedra, provada, angular, de alicerce, que terá uma inscrição: “quem nela se apoia, não vacila”. A imagem (retomada pelo Sal 118,22) adquire, no judaísmo tardio, uma conotação messiânica: o “Messias” será essa pedra, sobre a qual Deus vai construir a sua intervenção salvadora na história, em favor do seu Povo. Cristo Ressuscitado é essa pedra escolhida, preciosa, viva sobre a qual Deus fundamenta a sua intervenção salvadora em favor dos homens.
Assim, a imagem da ‘pedra’ introduz-nos na compreensão da novidade baptismal: ‘Pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, os baptizados são consagrados para serem uma morada espiritual’. O Espírito Santo «unge» o baptizado, imprime-lhe a Sua marca indelével (cf. 2 Cor 1, 21-22) e faz dele templo espiritual, isto é, enche-o com a santa presença de Deus, graças à união e à conformação com Jesus Cristo. Assim, com a efusão baptismal e crismal o baptizado torna-se participante no múnus sacerdotal, profético e real de Jesus Cristo.
Os cristãos são convidados a aproximar-se de Cristo (isto é, a aderir à sua proposta, a segui-l’O no caminho do dom da vida, a cimentarem a sua comunhão com Ele) e a entrar na construção do edifício de Cristo – um edifício espiritual, cujo fim é “oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus” (cf. 1 Pedro 2,5), como ‘geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus, para anunciar os louvores’ (cf. …. cf. 1 Ped 2, 8-9), comunidade essencialmente diaconal que tem no centro da sua dinâmica o serviço – seja o serviço da Palavra, seja o serviço de assistência aos irmãos mais pobres.
Hoje, estamos habituados a considerar tudo com o critério da produtividade e da eficácia que as ocupações excessivas, uma vida frenética. Por isso, devemos procurar uma profunda unidade de vida entre oração e acção, entre o amor total a Deus e o amor aos irmãos, a harmonia entre contemplação e laboriosidade. Urge buscarmos o recolhimento interior na oração para nos defendermos dos perigos de uma actividade excessiva, prestando à Palavra do Senhor uma atenção diligente. Que a excessiva preocupação por uma pastoral da prosperidade e da manutenção e o ‘corre-corre’ das obrigações quotidianas exigidas pela função pública não nos distraiam do conhecimento da Palavra celeste e da oração pessoal e comunitária. Sem a oração quotidiana, vivida com fidelidade, o nosso fazer esvazia-se, perde a alma profunda, reduz-se a um simples activismo que, no final, nos deixa insatisfeitos.
‘Senhor! Inspirai as nossas acções e acompanhai-as com a vossa ajuda, para que cada nosso falar e agir receba sempre de Vós o seu início e em Vós tenha o seu cumprimento!
Amen!
Pe. Dr. José Brinco
Director