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ARDE-NOS O CORAÇÃO?

3 Dom Pasc’ 2023
(leia: Actos 2,14.22-33; 1Pedro 1,17-21; Lucas 24,13-35)

Corações desiludidos. Sonhos terminados. A “magia” dos anos passados com o Mestre esfumou-se na cruz. Voltam à velha rotina, os dois discípulos de Jesus que tinham vindo da aldeia de Emaús. Regressam a casa de mãos vazias. Com um nó na garganta e uma história triste para contar. Um deles chama-se Cléofas. O outro não tem nome. Talvez para que cada um de nós preencha esse vazio com o seu nome, se sinta parte dessa história, percorra essa estrada.

Já lá vão três dias, desde os acontecimentos daquela fatídica sexta-feira. O véu de escuridão que tinha descido sobre a face da terra cobre ainda o espírito dos dois desconsolados discípulos. Discutem aqueles eventos com sabor amargo de fracasso. Desconcertados, desorientados. Incapazes de ver além da tristeza. Incapazes de perceber quem é o forasteiro que agora caminha com eles. «Que discutis? De quem falais?», indaga ele, para os fazer acordar do torpor. A resposta é ainda uma lamentação: «Não ouviste falar de Jesus de Nazaré, profeta acreditado por Deus? As nossas autoridades mataram-no, pendendo-o numa cruz… Nós esperávamos que fosse ele a libertar Israel, mas já se passaram três dias desde tudo isso… É certo que umas mulheres do nosso grupo dizem terem-no visto; mas… ».

O caminho de Jerusalém para Emaús é tantas vezes o nosso caminho. Somos presas fáceis do negativismo. Inclinamo-nos a olhar mais o lado obscuro da vida que a sua face luminosa. Parece que acreditamos mais na força do mal que na energia do bem. De nós e dos outros, tendemos a ressaltar mais as coisas ruins que as positivas. As más notícias têm um impacto maior que as boas sobre a maioria da gente. Os telejornais são um reflexo disso. Aos poucos, tornamo-nos prisioneiros dum olhar pessimista sobre a vida. Prisioneiros do sombrio.

«Esperávamos que fosse ele a libertar Israel, mas… » — uma confissão triste, sem saída de esperança. E, sem esperança, mirramos por dentro. Os dois de Emaús — Cléofas e eu — não podemos conceber um Messias vulnerável. Com dificuldade conseguimos entender que a Cruz não foi fatalidade, derrota, mas plenitude de amor doado. «O Pai me ama, porque dou a minha vida… Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim mesmo» (João 10,17-18). E o forasteiro volta a ser Mestre. Desafia os dois desencantados discípulos com uma provocação: «Ignorantes e lentos de coração em crer no que os profetas anunciaram!…». Toma-os pela mão, ajuda-os a fazer uma estrada interior fundamental: reler as Escrituras, cruzá-las com a vida, e aprender a ver os acontecimentos à luz dum projecto mais amplo — o amoroso projecto salvífico de Deus: «Não devia o Messias sofrer essas coisas, para que a sua glória se manifestasse?…».

Num mundo dominado pela força implacável dos lobos, não devia Deus dar-nos o seu querido Filho como Cordeiro? Não devia o Filho doar-se plenamente por amor, para que a humanidade aprenda o caminho de regresso ao coração do Pai, ao coração uns dos outros? E, pelo caminho, acontece o primeiro milagre. Uma luz começou a fazer brecha na noite escura daqueles corações: «Não nos ardia o coração, quando ele nos falava pelo caminho?…». Só quem carrega dentro um lume de esperança pode fazer arder os corações de quem o escuta. Só quem fala com paixão a partir duma experiência vivida pode acender chispas de sonho em espíritos resignados. Transmitir a fé é mais que expor uma doutrina ou dar ensinamentos atequéticos; é aquecer corações, contagiar vidas com a boa notícia do incomensurável amor de Deus. Em tempo de incertezas, medos e extremismos, como é fundamental esse contágio de esperança e luz!…

Chegam à aldeia. O forasteiro quer seguir adiante, mas aceita o convite dos dois imprevistos companheiros: «Fica connosco, pois já vem caindo a noite». Apesar da noite da desilusão, os dois não perderam o calor da hospitalidade. E no aconchego da mesa, na simplicidade do pão partido, eles conseguem ‘ver’: é o Mestre que esteve caminhando connosco nas horas de angústia! Agora são capazes de ‘ver’ com os olhos do coração! Aqueles gestos são inconfundíveis. A bênção e o partir do pão lembram-lhes a multiplicação do pão e do carinho no deserto; lembram-lhes o gesto profundo da Última Ceia, em que o Mestre, no pão e no vinho, partiu antecipadamente a sua vida, que seria doada totalmente por todos na cruz. Desde então, os cristãos fazem memória da vida do seu Mestre — servidor de todos até ao fim — na Eucaristia: acolhendo a Palavra de promessa e de esperança que rescalda o coração; comungando da mesma vida de Jesus, no pão e vinho consagrados. Fazem memória, para que o mundo não esqueça qual o caminho de regresso ao coração de Deus, ao coração uns dos outros.

A missão da Igreja é a de ser memória do Crucificado-Ressuscitado. Como o seu Mestre, ela deve saber sair da sacristia e do templo, e meter-se pelas estradas da vida que as mulheres e homens de hoje percorrem. Para escutar as suas vozes de angústia, dor e incerteza. Para, com palavras e gestos concretos, lhes devolver esperança, dignidade e sonho. A Igreja faz memória do seu Senhor, quando O venera sacramentalmente e — com o mesmo cuidado — se ocupa do seu Corpo dilacerado na carne sofrida dos homens, seus irmãos. São as nossas comunidades lugares onde se rescalda o coração? Onde se vive o acolhimento de todos, sobretudo dos mais frágeis e dos que se sentem perdidos? São os nossos ambientes cristãos lareiras de Misericórdia e Compaixão? O anúncio da Palavra brota em nós dum coração que arde por Jesus Cristo e pelo seu Reino?