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“DESCE DA CRUZ!”

DomRamos’A. 2023
“DESCE DA CRUZ!”
(leia: Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Mateus 26,14–27,66)

O Domingo de Ramos abre as portas da grande Semana Santa.
As celebrações destes dias introduzem-nos nesse mistério
incómodo: o de um Messias humilhado, um Deus crucificado!
A dificuldade de muitos de nós é que já conhecemos o guião.
Celebrámos tantas vezes esses eventos, que corremos o risco
de eles não deixarem qualquer marca em nós.
Só quem está disposto a deixar-se ferir pela ferida do Mestre
pode ter acesso às suas chagas redentoras.

Quando as primeiras comunidades cristãs quiseram narrar
os eventos da vida de Jesus de Nazaré, começaram por falar
da sua paixão e morte. O significado desse mistério e o modo
como o Mestre o viveu deixaram uma marca de fogo nas suas
vidas. Assim nasceram os evangelhos.

Na narrativa evangélica de hoje, desfilam os vários personagens
que interagem no drama da paixão: Jesus, Judas, Pedro e os
outros discípulos; as autoridades religiosas e políticas;
a multidão; os soldados; as mulheres discípulas vindas da
Galileia; Simão de Cirene (Líbia!), improvisado companheiro
de dor; José de Arimateia, discípulo na hora dramática;
o militar pagão, que reconhece naquele justo o Filho de Deus…

Tudo começa na (última) Ceia. O Mestre, com seus discípulos,
celebra antecipadamente o que vai suceder nas próximas horas:
«Este é o meu corpo, entregue por vós, por todos»… «Este é o
meu sangue, sangue da aliança, derramado por vós, por todos»…
Linguagem e gestos de puro amor!
Mas o clima se faz pesado, porque se sente a traição chegar:
«Profundamente entristecidos, perguntou-lhe cada um:
“Serei eu, Mestre”?». Judas sai, para actuar o seu plano macabro,
mas os demais discípulos vão revelar-se igualmente traidores.
A começar pelo primeiro de todos, Pedro, o mais corajoso.
Fortaleza e cobardia, generosidade e medo, negação e fuga… são
as cores com que se narra a história dos primeiros discípulos,
dos discípulos de todos os tempos… a nossa história de ‘sins’
e ‘nãos’… Oxalá possamos encontrar momentos propícios para
chorar as nossas traições, como Pedro. É o começo da redenção.

O conluio entre as autoridades religiosas e políticas determina
o destino trágico de Jesus. Para as autoridades religiosas,
Jesus é uma espinha na garganta. Não suportam mais a sua
liberdade, a sua ousadia em questionar comportamentos
incoerentes, a denúncia de terem feito da religião um
jugo de normas e proibições que pesa sobre as pessoas,
em vez de ser uma fonte de vida e de esperança.
Decididamente, ele «deve» morrer!… As autoridades políticas
– Herodes, Pilatos – aproveitam o embalo, para se desfazerem de
um revolucionário incómodo e perigoso. A multidão, manipulada
pelas autoridades, corrobora a sentença: «Seja crucificado!»…

Impressionante é o comportamento do sentenciado (Jesus)!
Discípulos, autoridades e multidão agem movidos pelo medo,
o nervosismo, a cobardia, a histeria… Jesus não perde a
serenidade. A Judas que o vinha entregar aos soldados, diz:
«Amigo, a que vens?». A Pedro, que queria usar de violência
em sua defesa, diz peremptório: «Mete a espada na bainha!».
Ao supremo Conselho Judaico, que o intima a declarar se é
o Messias, o Filho de Deus, responde: «Vós o dissestes». A Pilatos,
que lhe pergunta se é o Rei dos Judeus, replica: «Tu o disseste».
Tinha-se preparado para essa prova suprema, num árduo
combate espiritual: «Prostrando-se com a face por terra,
assim rezou: ‘Pai, afasta de mim este cálice! Não se faça, porém,
o que eu quero, mas o que tu queres’. (…) Foi orar pela terceira
vez, dizendo as mesmas palavras» (Mt 26,39-44).

A cruz incomoda. Desestabiliza-nos um Messias que grita:
«Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?!…» (Mt 27,46).
Bem no fundo de nós, gostaríamos de ver realizadas as palavras
dos que nessa hora dolorosa o desafiam: «Se és o Filho de Deus,
desce da cruz! Salva-te a ti mesmo!» (Mt 27,41-43). As nossas
aspirações encaixam melhor na imagem de um Deus potente.
Não queremos um Messias perdedor. Podemos até comover-nos
enquanto celebramos a morte de Jesus. Mas, na vida concreta,
ansiamos por um Deus forte, que não se deixe humilhar, derrotar.
Um Deus que confirme a nossa escondida ânsia de poder.

Mas o Mestre não desce da cruz! Prefere ser impotente,
vulnerável, porque os seus irmãos, os pobres, os injustiçados,
não podem descer da cruz. Faz-se um de nós, solidário connosco,
até às últimas consequências: «Não se valeu da sua igualdade
com Deus, mas esvaziou-se. Assumiu a condição de servo, fez-se
igual ao homem… Humilhou-se ainda mais, obedeceu até à morte…»
(Filip 2,6-8). Jesus não planeou a própria vida como um bem
a usufruir segundo os próprios interesses. Teve um só jeito
de viver: doar-se aos serviço de todos, renunciando a toda
forma de poder. Este faz-nos, quase sempre, prisioneiros
de nós mesmos e manipuladores dos outros para os nossos fins.

De que lado estamos hoje, como cristãos? Que imagem de Igreja
cultivamos? Uma Igreja potente, com honrarias e reconhecimento
público, que se dá bem com os poderosos? Ou somos uma Igreja
que se coloca ao lado dos crucificados, dos excluídos e injustiçados,
dos que nada contam na sociedade? Uma Igreja assim deve estar
disposta a correr riscos, como correu o seu Mestre, que se
despojou da ‘grandeza’ divina, para ser plenamente solidário
com a nossa humanidade ferida. Com a sua Paixão, ele participa
plenamente da paixão pela qual passa toda a humanidade,
nestes dias de guerras, crises, incertezas. De dentro dela,
ele nos redime e nos chama à esperança.

Penúltimo acto. Maria Madalena e as discípulas vindas da
Galileia colocam-se «sentadas em frente ao sepulcro» (Mt 27,61).
O coração diz-lhes que a pedra que fechou a tumba não matou
o seu sonho. Os soldados estão lá também, guardando o sepulcro,
defendendo a vitória da injustiça e da iniquidade. Uma vitória
provisória, como é sempre a vitória da prepotência e do mal.
Na manhã de Páscoa, eles fugirão confusos…

Entretanto, o mundo novo está já em acção. Quando Jesus morre,
diz Mateus, «o véu do templo rasgou-se» (terminou a religião do
‘jugo’); «os mortos saíram dos sepulcros» (a morte de Jesus é fonte
de vida). As mulheres discípulas são as sentinelas da nova Manhã.
Quem vigia como elas não se deixa derrotar pelo medo e as forças
da morte. Quem aceita dar a vida por amor, como o Mestre,
verá, mais tarde ou mais cedo, rolar a pedra do mal e da opressão
— ressuscitar!

(João Pedro Fernandes, CSsR)