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Escutar com a mente e o coração abertos: O contributo da Palaver africana ao processo de preparação do Sínodo sobre a Sinodalidade

ESCUTAR COM A MENTE E O CORAÇÃO ABERTOS: O CONTRIBUTO DA PALAVER AFRICANA AO PROCESSO DE PREPARAÇÃO DO SÍNODO SOBRE A SINODALIDADE

Padre José Joaquim, Missionário Comboniano – Moçambique
INTRODUÇÃO
Antes de tudo, gostaria de aplaudir esta iniciativa do Secretariado da IMBISA que nos concede a oportunidade de aprofundar e partilhar aproximações teológicas e abordagens hermenêuticas visando enriquecer o processo de preparação para o sínodo sobre a sinodalidade.
A primeira parte do título da minha apresentação (“escutar com a mente e o coração abertos”) é extraído das primeiras palavras do segundo núcleo de perguntas de reflexão em preparação para o próximo sínodo: A escuta é o primeiro passo, mas requer que a mente e o coração estejam abertos… E a segunda parte (“o contributo da palaver africana ao processo de preparação do sínodo sobre a sinodalidade”) pretende estimular o debate sobre possíveis contributos que as culturas africanas podem trazer ao processo sinodal.
A principal motivação para aprofundar o presente tema reside na importância da escuta para uma vida eclesial que seja deveras sinodal. Além disso, a presente reflexão se justifica pela tendência dos cristãos à mornidão e indiferença perante as realidades de pecado estrutural, por um lado, e por outro, pela surdez e monologia, que tendem a caracterizar a presença da Igreja no mundo atual.
Quanto à mornidão e indiferença, a 8 de outubro de 2012, durante as cerimónias de abertura dos trabalhos do Sínodo dos Bispos para a nova Evangelização, o Papa emérito Bento XVI fazia referência aos cristãos mornos e indiferentes como um obstáculo real para a missão da Igreja. Esta atitude dos cristãos deve-se em parte à falta de escuta ad intra, isto é, entre os vários membros da Igreja, e ad extra, isto é, para com as demais religiões e os vários âmbitos da vida sociocultural.
No concernente à surdez e monologia, o Papa Francisco na sua mensagem para o 56o Dia Mundial das Comunicações Sociais, afirma que a Igreja está a correr o risco de perder a capacidade de escutar as pessoas que tem à sua frente, a capacidade de interagir com os seus filhos, tanto na teia normal das relações quotidianas como nos debates sobre os assuntos mais importantes da convivência civil e eclesial. Assim sendo, a Igreja tende a tornar-se surda e monóloga: igreja surda porque escutamos pouco; e igreja monóloga porque falamos a sós e sobre nós mesmos, com discursos que nem sempre interessam ao nosso interlocutor.
Como consequência da falta de escuta ad intra e ad extra, a Igreja corre o risco de tornar-se irrelevante, sem papel claro e forte para as pessoas, pois consideram-na uma voz que não dialoga com os vários contextos. Em África, e no mundo em geral, existem grupos humanos que não precisam de tanta argumentação sobre a fé cristã, mas de escuta, diálogo e relacionamentos que indiquem como e onde podem encontrar o sentido da vida. E para tal, a meu ver, a palaver africana pode contribuir com alguns elementos da sua metodologia e procedimentos para que a Igreja abrace a espiritualidade da escuta ad intra e ad extra.
A minha partilha inspira-se no método de reflexão teológica africana que consiste basicamente no seguinte:
1) Apresentação do tema em discussão do ponto de vista bíblico ou doutrinal;
2) Exposição dos elementos culturais africanos que poderiam ajudar a abordar o tema;
3) Propostas concretas de como os elementos africanos poderiam ser úteis para a concretização do tema.

1. A “escuta” na Bíblia
Um estudo aprofundado da escuta na Sagrada Escritura levar-nos-ia a desenvolver uma teologia pragmática entendida como como uma reflexão das implicações da escuta ou não escuta da Igreja. Porém, dada a natureza desta apresentação, tomaremos apenas o SHEMÁ ISRAEL (Escuta Israle) como base para a nossa reflexão, com o intuito de oferecer uma visão geral do tema da escuta a partir dos textos bíblicos.
SHEMÁ é um termo de natureza polissêmica, isto é, pode apresentar vários sentidos segundo o contexto em que aparece na Bíblia. Alonso Schökel identifica os seguintes significados: ouvir, escutar, atender, prestar atenção, obedecer. Para Yarden, SHEMÁ significa: acatar, observar, saber, conhecer, compreender, entender, aceitar e receber. A versão grega do Antigo Testamento (os LXX) traduz o termo hebraico SHEMÁ por AKOUO, predominantemente no imperativo (ouve, escuta, fica sabendo). Além de AKOUO, SHEMÁ é também traduzido nos LXX pelos seus compostos, especialmente HYPAKOUO (dar atenção, obedecer) e EPAKOUO (ouvir, conceder).
Importa também salientar que, tanto no texto bíblico massorético quanto na Septuaginta, o verbo “escutar” foi empregado no imperativo a fim de sinalizar que, para Israel, escutar é uma ordem, não um simples convite. Portanto, é um imperativo que Israel escute para poder continuar a ser o Povo de Deus.
O ouvido e o coração são os órgãos privilegiados para as relações das pessoas entre si e com Deus. Estes órgãos exercem uma função religiosa e social. Por isso é que para que o israelita possa relacionar-se bem com Deus e com os outros é exortado a circuncidar o ouvido (Em hebraico: ARELÁ AZNAM, Jr 6, 10) e a circuncidar também o coração (em hebraico: UMALTEM ET ARLAT LVAVKEM, Dt 10, 16). Neste contexto, circuncidar o ouvido e o coração significa escutar com a mente e o coração abertos.
No Antigo Testamento, o espaço reservado para a escuta do povo relativamente à vida da comunidade chamava-se KAHAL (o termo hebraico que significa assembleia). A KAHAL caracterizava-se pela interação livre e aberta entre os israelitas sobre a sua vida religiosa e social (Gn 49, 6; Dt 9, 10; Pr 26, 26).
Quanto à escuta no Novo Testamento, importa notar que assim como Deus convocou todo o povo de Israel a escutar, em Jesus todas as gerações também são convocadas a viver o SHEMÁ como primeiro mandamento. No Novo Testamento a escuta é o caminho que conduz à misericórdia, uma das características principais da relação de Deus com os homens e destes entre si. É só cumprindo o SHEMÁ que se consegue encarnar a mesma atitude do Senhor na prática da misericórdia (Em Grego: ÉLEOS THELO KAI OÙ THUSIAN, misericórdia quero, e não sacrifício, Mt 12, 7). Ademais, é importante notar que no Novo Testamento a escuta é centrada na pessoa de Jesus, que é ao mesmo tempo objecto e modelo de escuta para a assembleia dos batizados (EKKLESIA).

2. A “escuta” no contexto da palaver Africana
2.1. Nota geral
Na presente apresentação o termo palaver é emprestado dos académicos da literatura oral Africana, e designa uma reunião familiar ou tribal que as sociedades africanas tradicionais realizam com o objetivo de tratar assuntos importantes na vida da comunidade. A título exemplificativo, para os Makhuwas de Moçambique, palaver corresponde a muthukumano waananlokoni, um encontro familiar convocado e moderado pelo humu (chefe da família) ou pelo mwene ou mpewe (chefe da tribo). Dentro da mesma tradição, os bakongo do Congo e Angola têm uma cabana (mbongi) reservada para encontros de escuta mútua e resolução de conflitos familiares, moderados pelo nzonzi (chefe tribal). Os Borana do sul da Etiópia e norte do Quênia, têm o hayu, o moderador do processo de escuta e discussão familiar. Em todas estas etnias, a palaver serve para restaurar a harmonia e consolidar a comunidade partindo dos valores ancestrais.
A meu ver, as dinâmicas de escuta presentes na palaver de muitas etnias africanas podem ser úteis para o processo de preparação do sínodo sobre a sinodalidade. Vou tomar o caso do Povo Makhuwa de Nampula, em Moçambique, e vou-me cingir apenas a 4 elementos que são mais pertinentes ao tema da escuta: os intervenientes, a matéria de debate, o moderador e a linguagem usada.

2.2. As Dinâmicas de escuta na palaver dos Makhuwas de Nampula (Moçambique)

2.2.1. Intervenientes no processo de escuta
Na palaver dos Makhuwas (muthukumano), intervêm apenas os iniciados, mas todos participam activamente no debate tendo em mente a realidade, as experiências e o futuro da comunidade. Todos os intervenientes (mulheres, homens, jovens, adultos e idosos) sentem-se incumbidos da missão de assegurar a continuidade dos valores tradicionais da comunidade. Para os jovens, sobretudo, o muthukumano é uma oportunidade de aprender a pensar, de adestrar-se no debate e conhecer melhor a vida da família ou tribo, escutando as intervenções dos mais velhos. Para os Makhuwas, envolver os jovens no muthukumano, é garantia de futuro das suas tradições e do legado dos antepassados.

2.2.2. Matéria de debate
Qualquer assunto relativo à vida da comunidade constitui matéria de debate no muthukumano. Porém, o chefe de família ajuda a priorizar os assuntos, segundo as necessidades da comunidade. Importa destacar que a matéria de debate nunca é teórica, é sempre pragmática; a teoria serve apenas para fundamentar ou esclarecer o assunto, mas nunca como ponto de partida para o debate ou partilha.

2.2.3. Moderador
O moderador do muthukumano é o chefe da família (humu) ou o rei (mpewe). Estes, salvo algumas exceções, não podem delegar o seu papel de moderadores aos outros, não por centralismo, mas porque eles têm uma visão geral da vida de toda a família ou tribo. É interessante notar que existe também a moderação em equipe: duas ou mais pessoas, juntamente com o humu (chefe da família) ou mpewe (chefe da tribo), moderam o muthukumano (encontro) assegurando que a temática seja esgotada e se chegue às conclusões. A moderação em equipe faz com que as intervenções de todos sejam escutadas e tomadas em conta ao momento de se tirarem as conclusões e orientações. Há também a possibilidade de escutar as reações dos presentes quanto à conclusão feita pelo moderador, e para os assuntos muito complexos prevê-se também a realização de várias sessões de debate.

2.2.4. Linguagem
De maneira geral, o estilo usado para contar e expor os assuntos é narrativo: predominam os provérbios, histórias, metáforas e outros tipos de comparação. Além disso, é frequente a referência aos antepassados para sustentar alguns pontos. A escuta na palaver dos Makhuwas caracteriza-se essencialmente por:
1. Boa gestão das palavras, uso do vocabulário acessível a todos os participantes e uso de palavras poderosas do ponto de vista persuasivo;
2. Respeito pelas perspetivas e experiências do outro;
3. Forte sentido de pertença à família: apenas questões sérias que afetam a vida e o destino coletivo do povo são debatidas;
4. Contextualidade e pragmaticidade das temáticas: os pontos de debate dizem respeito à comunidade e concernem ao dia a dia da mesma;
5. Participação activa dos jovens como garantia de continuidade dos valores ancestrais.

3. Aplicação dos mecanismos de escuta do povo Makhuwa ao processo de preparação e actuação do Sínodo sobre a Sinodalidade

a. A palaver Makhuwa caracteriza-se pela escuta de Deus e dos antepassados. Na Igreja, a auscultação do Povo de Deus deve ser acompanhada do processo de leitura contextualizada da Palavra de Deus. Daí que a fase de preparação para o Sínodo deveria ser pontuada dum processo de reflexão sobre textos bíblicos inspiradores;

b. A palaver Makhuwa aprimora uma escuta holística da realidade interna e externa à comunidade. Uma Igreja sinodal deve escutar as experiências não apenas as relativas ao campo socioeconómico das pessoas, mas também as experiências da vida intraeclesial, isto é, como os cristãos se sentem na Paróquia e na Igreja em geral. Seria deveras profícuo se as Conferencias episcopais, dioceses e paróquias realizassem diagnósticos sobre o grau de satisfação dos cristãos, aprimorando mecanismos de feedback com questionários e entrevistas;

c. A palaver Makhuwa consegue persuadir os presentes e os demais membros da comunidade graças à sabedoria que caracteriza as intervenções e as orientações que se traçam. Uma escuta sinodal em África não pode prescindir da sabedoria africana. Os guardiães da sabedoria africana devem ser convocados e escutados pela Igreja com o coração e ouvidos abertos, sem preconceitos;

d. Nas comunidades Makhuwas a escuta permeia as relações com Deus e com os outros. Na Igreja é oportuno fomentar-se a espiritualidade da escuta ao nível diocesano e paroquial constituindo-se grupos animadores da mesma. Estes dinamizariam o processo de escuta e garantiriam que a atitude de escuta seja transversal a todas as pastorais paroquiais, movimentos e comunidades religiosas;

e. Entre os Makhuwas para uma escuta frutífera exige-se o uso de uma linguagem apropriada para cada grupo. Para termos uma Igreja verdadeiramente sinodal não basta identificar grupos humanos e realidades que necessitam de ser escutadas. É imperativo delinear as modalidades e dinâmicas de escuta e a linguagem a usar. Não basta um simples questionário direcionado aos vários grupos: jovens, leigos, consagrados, políticos, idosos, etc. É preciso definir para cada grupo não apenas as perguntas, mas sobretudo as dinâmicas de escuta e a linguagem apropriada para que eles possam expressar-se. E tais modalidades e dinâmicas deveriam ser permanentes na vida da Igreja, e não apenas com vista à elaboração de um relatório para um sínodo;

f. A palaver dos Makhuwas visa identificar as possíveis soluções para os problemas da comunidade, não é uma mera auscultação. Na Igreja, as perspetivas e experiências dos grupos auscultados devem ser aprimoradas e tomadas como ferramentas para a solução dos problemas que a Igreja enfrenta nos diferentes contextos culturais;

g. O processo de auscultação dos Makhuwas é pragmático, não se baseia em teorias. As questões para a auscultação sinodal e para a discussão durante a fase de celebração do Sínodo devem ser pragmáticas, abordando realidades concretas da vida e missão da Igreja hoje;

h. O jovem Makhuwa é considerado pelos anciãos como garantia de continuidade dos valores que passam de geração em geração. Para o nosso processo de escuta sinodal, os jovens não podem ser tomados apenas como objeto de escuta ou meros interlocutores, mas, sobretudo, como colaboradores no processo de escuta (coescutadores).

i. Na era digital há que desbloquear os ouvidos para poder escutar e sentir com amor o homem digital. Daí que é preciso atualizar tanto os processos de escuta africanos como os processos sinodais de auscultação para podermos escutar as novas gerações e tomar a sério o seu feedback.

CONCLUSÃO
Para terminar, acho iluminadora a seguinte reflexão do Papa Francisco:
“Na ação pastoral, a obra mais importante é o «apostolado do ouvido». Devemos escutar, antes de falar, como exorta o apóstolo Tiago: «cada um seja pronto para ouvir, lento para falar» (1, 19). Rezemos para que o processo sinodal seja uma grande ocasião de escuta recíproca… Como num coro, a unidade requer, não a uniformidade, a monotonia, mas a pluralidade e variedade das vozes, a polifonia. Ao mesmo tempo, cada voz do coro canta escutando as outras vozes na sua relação com a harmonia do conjunto. Esta harmonia é concebida pelo compositor, mas a sua realização depende da sinfonia de todas e cada uma das vozes.” Para que isso aconteça na Igreja em África, devemos acolher a riqueza cultural africana no concernente à escuta, abrindo a nossa mente e o nosso coração para escutar todas as pessoas e todas as realidades deste continente.