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‘ NEM EU TE CONDENO. VAI E NÃO TORNES A PECAR’

Pe. Dr. José Brinco, Diocese de Benguela, Angola

5º DOMINGO DA QUARESMA – ANO C

3 de Abril 2022
‘«Nem Eu te condeno. Vai e não tornes a pecar» (Jo 8,11).

Quaresma é caminhada rumo à transfiguração escatológica, rumo à salvação integral, à qual o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, que ‘não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva” (cf. Ez 18, 23), chama todos os homens. Por isso, em cada Quaresma somos convidados, como diz Paulo, a ‘esquecer-se do que fica para trás, lançar-se para a frente, continuar a correr para a meta, em vista do prémio a que Deus, lá do alto, nos chama em Cristo Jesus’ (cf. Filip 3, 13).
No Evangelho de hoje, os escribas e os fariseus, pretendendo armar uma cilada a Jesus, apressentam-lhe uma mulher surpreendida em adultério, dizendo: «Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres’. Tu que dizes?’ (cf. Jo 8, 5). Jesus está diante de um verdadeiro dilema: Se for misericordioso para com a mulher, vai contra a lei que Ele mesmo disse não querer abolir, mas cumprir (cf. Mt 5, 17). Se, ao invés, seguir a severidade da lei, perde a sua fama de mansidão e bondade que tanto fascina o povo (cf. Mt 2, 24; Mc 1, 21-28; Lc 4, 37; 7, 17). De facto, na segunda leitura de hoje (Filip 3,8-14), Paulo, dirigindo-se, desde a prisão, aos seus cristãos rodeados por “judaizantes” que semeiavam a dúvida e a confusão, proclamando uma justiça que oprime e escraviza o homem, afirma que somos justificados, não pela Lei de Moisés, mas sim, pela fé em Jesus Cristo (cf. Filip 3, 8-11).
Estamos quase nos derradeiros instantes do Março-mulher. Comemorámos, há pouco, o feriado prolongado em honra de todas as Mulheres do mundo. Segundo reza a história, esta efiméride internacional surgiu como símbolo do protesto de organizações femininas contra discriminações sociais e violências morais e físicas sofridas pelas mulheres, em vários países da Europa e nos Estados Unidos, desde o final do século IXX. Hoje, existem novas formas de opressão económica e violência política que escravisam as mulheres, tais como a exploração sexual, a imposição de modelos e paradigmas que ignoram o direito à vida dos nascituros, etc…. Em muitos lugares, hoje, o fundamentalismo, a intransigência e a intolerância, falam mais alto do que o amor: mata-se, oprime-se, escraviza-se em nome de Deus; desacredita-se, calunia-se, em razão de preconceitos; marginaliza-se em nome da moral e dos bons costumes.
O nosso Deus, o Deus que ‘abriu caminhos e veredas entre as torrentes das águas e fez brotar rios na terra árida do deserto’ (Sal. 125 (126), não se conforma com qualquer forma de escravidão que roube a vida, a dignidade e a liberdade ao ser humano, criado à Sua imagem e semelhança (cf. Gen 1, 26-28). Por isso, na primeira leitura (Is 43,16-21), extraída do chamado “livro da consolação” (Is 40-48), os judeus exilados, frustrados e desorientados, pois a libertação tarda e porque Deus parece Se ter esquecido do seu Povo, sonham com um novo êxodo, no qual Jahwéh Se manifeste, outra vez, como o Deus libertador: ‘Fazei regressar, Senhor, os nossos cativos, como as torrentes do deserto’ (cf. Sal. 125 (126). O profeta (Deutero Isaias) anuncia a iminência da libertação e compara a saída da Babilónia e a volta à Terra Prometida com o êxodo do Egipto: «Não vos lembreis mais dos acontecimentos passados, não presteis atenção às coisas antigas. Olhai: vou realizar uma coisa nova (Is 43,18-19).
A salvação é um novo começo, uma nova criação. Esta experiência se torna evidente no cenário de fundo do Evangelho de hoje (Jo 8,1-11). Uma mulher surpreendida em adultério flagrante é apresentada a Jesus. Segundo Lv 20, 10 e Dt 22,22-24, esta mulher estava condenada à lapidação. Trata-se de uma oportunidade para testar a fidelidade de Jesus às exigências da Lei e a atitude de Deus frente ao pecado e ao pecador. Jesus não responde às provocações dos acusadores, cala-se e realiza um gesto misterioso, inclina-se e começa a escrever no chão com o dedo. Desta maneira, convida todos à calma, a não agir com base nos impulsos e procurar a justiça de Deus. Ao levantar o olhar, Jesus pronuncia a frase que se tornou famosa: ‘Quem de vocês não tiver pecado atire-lhe a primeira pedra’ (Jo 8, 7), i.é, dê início à lapidação. Estas palavras estão plenas da força desarmante da verdade, que abate o muro da hipocrisia e abre a consciência a uma justiça maior, aquela do amor, à qual corresponde o pleno cumprimento de qualquer preceito (cfr Rm 13,8-10). Os acusadores vão embora um por um, com a cabeça baixa, começando pelos idosos, mais conscientes de não serem sem pecado. O Mestre divino permanece a sós com a mulher, a Misericórdia e a Miserável; “Relicti sunt duo: misera et misericordia”, diz Santo Agostinho.
Queridos Irmãos! Quanto bem nos fará, neste tempo da Quaresma, tomar consciência de que somos pecadores e, desarmados, deixar cair as pedras, os mísseis hipersónicos que pretendemos lançar contra os nossos irmãos indefesos! “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” (Jo 8, 10). Jesus respeita a lei e, ao mesmo tempo, não abandona a sua mansidão: ‘Nem Eu te condeno. Vai, e doravante não tornes a pecar” (8, 11). Jesus não procura branquear o pecado ou desculpabilizar o comportamento da mulher; condena o pecado, mas não quer a morte do pecador (cf. Ez 18, 23). Deus não perdoa com um decreto, mas com um carinho, acariciando as feridas do nosso pecado (cf. FRANCISCO, Missa em Santa Marta, 7 de Abril, 2014). Assim, o confessionário não deve ser visto como uma câmara de tortura psicológica, um palco de lapidação das consciências, mas sim, um espaço sagrado onde se faz a alegre experiência do Perdão e da Reconciliação, a experiência da alegria do regresso à casa paterna (cf. Evangelii Gaudium, 44). Por isso, não tenhamos medo nem vergonha de revelar a miséria do nosso coração diante do Amor misericordioso de Deus. É este olhar de misericórdia de Cristo que fará o Apóstolo Paulo exclamar: “esquecendo o que fica para trás, lanço-me para o que está à frente. Lanço-me em direção à meta, para conquistar o prêmio que, do alto, Deus me chama a receber em Cristo Jesus” (Fil 3,14).
O encontro com a Pessoa de Cristo, o ‘Bem supremo’, dá à vida da mulher adúltera do Evangelho de hoje um novo horizonte, um rumo decisivo à existência (cf. Verbum Domini, 11). A mulher adúltera sente, talvez pela primeira vez, que não é um objecto de consumo, um objecto de prazer, mas sim, tem dignidade, é pessoa humana criada ‘à imagem e semelhança de Deus’ (cf. Gen 1, 27). Ela descobre que não se identifica com o pecado; reconhece que pode mudar de vida, pode sair daquelas escravidões e caminhar numa estrada nova. Uma vez perdoada, a mulher adúltera considera tudo (circuncisão, ritos da Lei, interesses materiais e egoístas, preocupações com honras ou com títulos humanos, apostas incondicionais em pessoas ou ideologias), como Paulo na segunda leitura de hoje, como ‘prejuízo’ ou ‘lixo’ em comparação com o ‘conhecimento’ de Cristo (cf. Filip 3, 8-11). Os termos ‘conhecer’ e ‘conhecimento’ devem ser aqui entendidos no mais genuíno sentido da tradição bíblica, quer dizer, no sentido de “entrar em comunhão de vida e de destino” com uma pessoa de Cristo, identificar-se com Ele, a fim de com Ele ressuscitar para uma vida nova.
Estimados irmãos e irmãs! Participar da vida nova de Cristo implica um esforço diário, nunca terminado; o caminho de conversão a Cristo é um caminho que está, permanentemente, a fazer-se. O cristão está consciente de que, enquanto caminha neste mundo, “ainda não chegou à meta”. Para ele a identificação com Cristo é um desafio constante, que exige um empenho diário, até chegar à meta do Homem Novo. Por isso, diz Jesus aos acusadores da mulher: «Quem de entre vós estiver sem pecado’, atire a primeira pedra» (cf. Jo 8, 7).
Ao terminar esta caminhada quaresmal, sejamos conscientes de que só o amor de Deus, e não a justiça da lei, é capaz de converter o nosso coração pecador. Que o Coração Imaculado de Maria, a Quem o Papa Francisco consagrou a Ucrância e a Rússia, suplicando o dom da paz e da reconciliação, nos ajude a confiar plenamente na misericórdia de Deus para que, com a generosa cooperação da nossa frágil e pecadora vontade, nos tornemos em Cristo, verdadeiramente, novas criaturas. Vinde a nós Espírito Santo, habitai em nossos corações, renovai a face da terra e ensinai-nos o rumo a seguir e como caminhar juntos até à meta.
Amém