De João Pedro Fernandes, CSsR a partir de Angola
(leia: Jeremias 1,4-5.17-19; 1Coríntios 13,4-13; Lucas 4,21-30)
A primeira visita de Jesus à sua terra, após ter começado a missão itinerante pela Galileia, parecia ser um sucesso. Ao sábado, na sinagoga de Nazaré, lê o texto de Isaías 61 (evangelho do domingo passado), qual programa do seu ministério: Ele é a encarnação da Boa Notícia do amor de Deus pela humanidade, sobretudo pelos últimos, os pobres. A Boa Nova deixou de ser promessa; ela cumpre-se «hoje» na vida e nos gestos do Nazareno. Não estranha que os seus conterrâneos se sentissem orgulhosos dele: «Todos davam testemunho em seu favor e se admiravam das palavras cheias de graça que saíam da sua boca».
Logo a seguir, porém, os sentimentos começam a mudar. Afinal conheciam bem esse homem, cresceu com eles: «Não é ele o filho de José», o carpinteiro aqui de Nazaré? Não estão sua mãe e seus irmãos entre nós? Como pode Deus revelar-se nele? Como pode Deus baixar tanto, e ser um de nós?… — De encantados, passam a desapontados. E a relação continua a esmorecer. Os nazarenos não falam; é Jesus que dá voz aos seus sentimentos. E o faz em tom provocativo: «Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaúm, fá-lo também aqui na tua terra». Faz milagres, opera prodígios, para que creditemos que vens de Deus!
O Mestre responde a essas falsas expectativas recordando o jeito de Deus agir: Ele o faz livre e gratuitamente, para lá de fronteiras de raça ou de crença, para lá de pretensos méritos. Assim foi no tempo de Elias: durante uma severa seca, havia muitas viúvas em Israel, mas o profeta foi enviado a socorrer apenas uma viúva pagã, em Sarepta, cidade da Fenícia. Assim foi com o profeta Eliseu: havia muitos leprosos em Israel, mas ele curou apenas a Naamã, chefe das tropas sírias, inimigas dos judeus! A provocação atinge o seu cume. «Ao ouvirem estas palavras, todos na sinagoga ficaram furiosos». O encanto inicial converteu-se em fúria, a ponto de quererem assassinar Jesus, após expulsá-lo da cidade!
Nazaré é o espelho de cada terra, de cada humano coração. Queremos um Deus potente, que nos maravilhe; não um Deus que nos interpele ou incomode, um Deus que nos mude o coração. Apraz-nos um Deus que realize coisas grandiosas, espectaculares; não um Deus que lava os pés aos homens. Atrai-nos um Deus Altíssimo, Todo-Poderoso; não um que se humilha numa cruz. Tudo porque nos é difícil ser servos, lavar os pés aos outros. Aspiramos a ser ‘importantes’, ‘grandes’. Não queremos mudar; queremos que os outros (e Deus) mudem. Queremos um Deus que encaixe nos nossos esquemas, que realize as nossas expectativas; não um Deus que nos transforme. O evangelista Lucas coloca neste (des)encontro de Nazaré algumas notas que marcarão a missão evangelizadora de Jesus: as falsas imagens de Deus que carregamos, a nossa resistência à mudança (conversão), a rejeição dos profetas que nos incomodam, culminando quase sempre na sua morte. A tentativa de assassinato do Mestre desde o «cimo da colina» é o prenúncio da sua morte no cimo de outra colina, o Gólgota, perto de Jerusalém. Jesus tem consciência dos riscos da missão profética. Sabe de quanta fortaleza e coragem se deve revestir para a cumprir. Assim acontece com Jeremias, com qualquer profeta: «Cinge os teus rins e levanta-te, para ir dizer tudo o que Eu te disser. Não temas diante deles, se não serei Eu que te farei temer a sua presença» (Jer 1,17: da 1ª leitura).
O Mestre é consciente, forte e livre. Até que chegue a sua ‘hora’, a da plena revelação de Deus, no dom total de si na cruz, ele prossegue o seu caminho. Sem se deixar prender pelo medo ou pelo ódio: «Passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho». O «seu caminho» é a sua própria vida e missão que farão dele Boa Notícia de amor para todos. Esse «caminho» é itinerário de vida nova que a humanidade é chamada a prosseguir, começando por seus discípulos e discípulas, que «hoje» somos nós.
O apóstolo Paulo sintetiza tal «caminho» na palavra «caridade» (‘ágape’ = amor incondicional, desinteressado, de entrega total). Um «caminho» que se percorre, não ‘rastejando’, como os nazarenos, mas ‘elevando-se’ (de quanta ‘elevação’ estão necessitadas as nossas comunidades, onde abunda um cristianismo ‘rastejante’, mesmo de tantos pastores!): «Aspirai com ardor aos dons espirituais mais elevados! (…) A caridade é benigna,… não é invejosa,… nem orgulhosa,… não procura o próprio interesse,… não guarda ressentimento; não se alegra com a injustiça; tudo desculpa, tudo espera, tudo suporta. (…) O dom da profecia acabará, o dom das línguas há-de cessar, a ciência desaparecerá; mas a caridade não acaba nunca!» (1Cor 13: da 2ª leitura).
Se a humanidade tem um futuro, ele passa pela «caridade». Mas o futuro constrói-se agora, no «hoje» de cada dia, prosseguindo o «caminho» do Mestre: sendo conscientes, fortes e livres, para amar de modo desinteressado.