Sir 27, 5-8 (gr. 4-7); 1Cor 15, 54-58; Lc 6, 39-45
Depois do discurso de Jesus, iniciado com a Bem-aventurança aos pobres, no domingo antepassado, e continuado com o apelo ao amor incondicional aos nossos inimigos (domingo passado), hoje aprendemos, em particular, preceitos relativos à hipocrisia e à falsidade: “porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua?”
Esta imagem paradoxal faz lembrar uma antiga lenda de Esopo (escritor da Grécia Antiga, 620-564 a.C.), segundo a qual, cada homem, ao entrar no mundo, traz consigo duas bolsas penduradas ao pescoço: uma à frente, cheia dos vícios dos outros; outra atrás, com os próprios vícios; é claro que ele vê e critica somente os vícios que tem diante de si, que são dos outros; e não vê os seus que estão atrás de si.
O conceito é o mesmo, seja no Evangelho, como na sabedoria dos antigos, no entanto, o contexto em que se colocam as duas realidades é diferente. Esopo regista simplesmente um facto da experiência comum, o que gera um certo pessimismo sobre a natureza humana e, por conseguinte, sobre a sociedade. Já o Evangelho convida-nos a olhar para o argueiro dos outros e para a nossa própria trave, porém, com os mesmos olhos com que o Senhor os olha.
Caríssimos, para não sermos hipócritas, urge apreciar e aprimorar primeiro os nossos próprios traves, isto é, os nossos pecados e defeitos. Só depois, talvez, enxergar os pecados do outro e ajudá-lo, desde que ele aceite de bom grado, a se corrigir. E se a condenação do pecado é justa, aquele que o comete não deve ser julgado nem condenado. O nosso juízo deve sempre recair sobre o mal, não sobre aqueles que o praticam, porque aqueles que praticam o mal são as primeiras vítimas do mesmo mal, daí que eles precisam de ser esclarecidos, ajudados, cuidados e salvos. Até porque, se conhecêssemos a nós mesmos, evitaríamos de facilmente julgar e condenar os outros.
Recordemos, no Evangelho de João, o episódio da adúltera, arrastada pelos seus acusadores para ser condenada e apedrejada diante de Jesus, que a salvou com a célebre frase: “quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra!” (Jo 8,7). Não em vão que o mesmo São João, na sua 1ª Epístola, dirá mais tarde: “se dissermos que não temos pecado, estamos enganando a nós mesmos, e a verdade não está em nós” (1Jo 1,8).
Meus irmãos, hoje, com o uso fácil de redes sociais, devemos estar atentos para não nos enganarmos a nós mesmos, para não mentirmos a nós mesmos, porque, como escutamos do Livro de Ben-Sirá, “as palavras do homem revelam o pensamento do coração” (Sir 27,7). E inspirando-se nisto, Jesus nos admoesta, dizendo, “a boca fala do que transborda do coração” (Lc 6,45), em suma, revela quem somos: “o homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem; e o homem mau, da sua maldade tira o mal” (Lc 6,45).
O bom cristão deve ser sincero, esforçando-se constantemente para que o seu próprio comportamento corresponda aos ensinamentos do divino Mestre, sem contudo presumir ter alcançado a perfeição nisto; e também, por isso, ser humilde e compreensivo em relação aos defeitos dos outros, procurando corrigi-los antes de tudo pelo exemplo; e se for necessário, intervir com uma advertência amiga e caridosa, sem se colocar como juíz ou mestre, porque, como diz o próprio Senhor, “um só é vosso Mestre e todos vós sóis irmãos” (Mt 23, 8), pois é, nós, cristãos, somos todos irmãos, filhos de um só Pai celeste.
Portanto, não sendo e nem querendo ser cegos a guiar outros cegos, somos convidados a olhar uns para os outros com o olhar do amor misericordioso com que Deus encara até para o mais endurecido dos pecadores. Ademais, se ‘não absolvo’ o outro, continuo sendo escravo do meu juízo sobre ele, rejeitando e ignorando a misericórdia de Deus que não condena e, assim, eu me condeno.
A este propósito, o falecido Cardeal Carlo Maria Martini (15.02.1927-31.08.2012), então Arcebispo de Milão, afirmou o seguinte: “quando a força de Deus é rejeitada ou negligenciada por nós, oscilamos entre duas posições: um pouco no sentido da compreensão bem-humorada para tudo e um pouco no sentido moralista-deploratório. Muitas vezes, nos falta o olhar que saiba enxergar misericordiosamente a maldade do homem”. Por isso, como nos admoesta São Paulo: “caríssimos irmãos, permanecei firmes e inabaláveis, cada vez mais diligentes na obra do Senhor, sabendo que o vosso esforço não é inútil no Senhor” (1Cor 15,8). Que Ele nos faça ser misericordiosos como o nosso Pai é misericordioso (cf. Lc 6,36).