CENTRO DIOCESANO
DE
DOCUMENTAÇÃO, INCULTURAÇÃO E ÉTICA SOCIAL
(CEDIES)
(D. ARMANDO AMARAL DOS SANTOS)
24º Domingo do Tempo Comum – Ano A
‘O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade’
(cf. Salmo 102 (103)
Queridos/as Irmãos/ãs em Cristo!
Quase todos os dias nos chegam de todos os cantos deste mundo digital e globalizado notícias sobre tensões, conflitos, guerras e genocídios. As situações de violência vão-se multiplicando cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela que o Papa Francisco chama de uma ‘terceira guerra mundial em pedaços’ (cf. Fratelli tutti, 26). As guerras, os conflitos, os comportamentos racistas e xenófobos, a lógica do “responder na mesma moeda”, a lógica do “olho por olho, dente por dente”, ainda dominam demasiadamente o mundo das relações interpessoais, bem como as relações internacionais. Para vingar ofensas reais ou imaginárias, desencadeiam-se mecanismos de violência que são responsáveis pela morte de inocentes, por sofrimentos e dramas sem fim e por uma espiral de violência sem limites e sem prazos. Estamos perante um mundo dominado pelos instintos de vingança, de rancor e de ódio e pela cultura do descarte. É este mundo que queremos? Claro que não. Então, como podemos inverter este triste quadro? Quê fazer para o nosso mundo, as nossas comunidades cristãs, sejam oásis de fraternidade aberta, diálogo e amizade social, como nos propõe o Papa Francisco sobretudo na ‘Fratelli tutti’? (cf. tb. Evangelii Gaudium, 185)
A Palavra de Deus que a liturgia deste Domingo nos oferece fala do perdão e da misericórdia. Apresenta-nos um Deus que ‘não guarda ressentimento, não nos castiga segundo os nossos pecados’ (cf. Salmo 102 (103), mas nos ama sem cálculos, sem limites e sem medida; e convidanos a assumir uma atitude semelhante para com os irmãos que, dia a dia, caminham ao nosso lado. O que nos dá paz e nos torna concidadãos do Reino eterno não são os gestos violentos que mostram aos outros a nossa força e apaziguam o nosso orgulho ferido, mas sim, os nossos gestos de perdão, de bondade, de misericórdia: ‘Perdoa a ofensa do teu próximo, não tenhas rancor ao próximo. Lembra-te do teu fim e deixa de ter ódio, pensa na corrupção e na morte, pensa na Aliança do Altíssimo, recorda e guarda os mandamentos’ (cf. Sir 27,33-28,9).
O perdão não é para o cristão sinal de fraqueza. Por isso, diz Paulo: ‘Se é mesmo precioso gloria-se, é da minha fraqueza que me gloriarei’ (cf. 2 Cor 11, 30; ver tb. Rm 5, 3; 2 Cor 12, 10). Muitos homens do nosso tempo pensam que só nos afirmamos, só nos realizamos e só triunfamos quando somos fortes e respondemos com força e agressividade à força e agressividade dos outros. O livro de Ben Sira (também chamado “Eclesiástico”), de onde foi extraída a primeira leitura deste domingo, deixa claro que a ira e o rancor são sentimentos maus, que não conduzem à felicidade e à realização do homem: ‘O rancor e a ira são coisas detestáveis, e o pecador é mestre nelas’ (cf. Sir 27,33). A propósito, falando da guerra, qual clara manifestação da ira e do ódio, o Papa Fancisco diz que ela é desumana, porquanto ‘acaba destruindo o projeto de fraternidade, inscrito na vocação da família humana’ (cf. Fratelli tutti, 26). ‘A guerra, continua o Papa, é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal’ (cf. Fratelii tutti, 261). Por isso, Ben Sira ensina que a “sabedoria”, o êxito e a felicidade do homem não passam por cultivar sentimentos de ódio e de rancor, mas por cultivar sentimentos de perdão e de misericórdia. O “sábio” (isto é, aquele que quer ter êxito e ser feliz) é aquele que é capaz de perdoar as ofensas e de ter compaixão pelo seu semelhante.
‘O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade (…) Não guarda ressentimento. (cf. Salmo 102 (103), canta o salmista. O homem, por sua vez, é pecador, mestre na prática dos vícios do rancor e da ira, diz Ben sira (cf. Sir 27,33). A primeira leitura e depois o Evangelho estabelecem uma relação entre o perdão humano e o perdão divino. Dois séculos antes de Cristo o judaísmo já tinha descoberto que existe uma relação entre o perdão que Deus misericordioso nos oferece e o perdão que Ele nos convida a oferecer aos irmãos. Só pode perdoar o seu irmão quem é capaz de acolher a bondade, o amor, o perdão de Deus. Como pode um coração dominado pelo ódio e pela vingança, um coração duro, violento e agressivo, compreender as falhas dos outros? Por sua vez, quem perdoa as ofensas dos outros torna-se capaz de pedir e esperar o perdão do Senhor para as suas próprias falhas.
Do mesmo modo, o Evangelho fala-nos de um Deus cheio de bondade e de misericórdia que derrama sobre os seus filhos – de forma total, ilimitada e absoluta – o seu perdão: ‘’Servo mau, não devias, também tu, compadecer-te do teu companehiro, como eu tive comapixão de ti?’. (cf. Mt 18,21-35). Os crentes são convidados a descobrir a lógica de Deus e a deixarem que a mesma lógica de perdão e de misericórdia sem limites e sem medida marque a sua relação com os irmãos. De facto, por detrás do texto que nos é hoje proposto, podemos entrever uma comunidade onde as tensões e os conflitos degeneram em ofensas pessoais e que tem muita dificuldade em perdoar.
O mandamento do perdão, como vimos na primeira leitura, não é novo. A grande discussão girava, porém, à volta do perdão aos inimigos e ao número limite de vezes em que se devia perdoar. Pedro consulta Jesus acerca dos limites do perdão: ‘se meu irmão me ofender, quantas vezes deverei perdoar-lhe? Até sete vezes? À pergunta formulada pelo porta-voz da comunidade, Jesus responde: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete’ (cf. Mt 18,21-35). Jesus orienta que não basta perdoar várias vezes, mas sim, perdoar de forma ilimitada, total e absoluta (“setenta vezes sete”). Deve-se perdoar sempre, sem reserva e a toda a gente, até mesmo aos inimigos (cf. Lc 6, 27-49). É neste contexto e a propósito da lógica do perdão que Jesus propõe aos discípulos a preente parábola (vers. 23-35). Um funcionário real, na hora de prestar contas ao seu senhor (provavelmente de impostos recebidos e nunca entregues), revela-se incapaz de saldar a sua dívida. O senhor ordena que o funcionário e a sua família sejam vendidos como escravos; mas, perante a humildade e a submissão do servo, o senhor deixa-se dominar por sentimentos de misericórdia e perdoa a dívida. Ao sair, este servo encontra um dos seus companheiros que também lhe devia. Segurando-o, começa a apertar-lhe o pescoço, manda-o prender, até que pague tudo quanto deve.
Nesta parábola, o que impressiona mais é o exagero da dívida que põe em relevo a misericórdia infinita do senhor. Dez mil talentos, equivalendo um talento a 36 Kg de ouro ou em prata, é uma soma incalculável. Cem denários, correspondendo um denário a 12 gramas de prata, é o salário diário de um simples operário, portanto quantia insignificante para um alto funcionário do rei. Estamos perante uma bela catequese sobre a misericórdia de Deus. Mostra como, na perspectiva de Deus, o perdão é ilimitado, total e absoluto.
‘Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu irmão de todo o coração’ (cf.) A parábola convida-nos a analisar as nossas atitudes e comportamentos para sermos misericordiosos como o nosso Pai do Céu o é. A comunidade cristã não é lugar de intolerância religiosa, conflitos tribais, guerras fratricidas, incompreensões partidárias, mas sim, é lugar da vivência do amor, do respeito pela diferença, da aceitação da alteridade, da partilha e escuta recíproca, do perdão fraterna e da paz.
«Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz » – diz o Senhor, que acrescenta – « Não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou » (Jo 14, 27). O mundo de hoje mantem-se dividido, em consequência disso, incapaz de enfrentar juntos os problemas globais. Estamos a navegar, disse há pouco o Papa Francisco, num momento tempestuoso e sente-se uma falta de rostos corajosos de paz’ (cf. Francisco, JMJ, Lisboa 2023). Superar as divisões e promover a paz e a comunhão entre todos os povos constitui tarefa inadiável da missão evangelizadora da Igreja. Porém, não pode haver paz sem perdão. Por isso, diz o Papa Fancisco: ‘Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou. Quebram o círculo vicioso, frenam o avanço das forças da destruição. Decidem não continuar a injetar na sociedade a círculo vicioso da vingança que, mais cedo ou mais tarde, acaba por cair novamente sobre eles próprios’ (cf. Fratelli tutti, 251).
O perdão e a misericórdia são os pilares essenciais para a construção de um mundo mais humano, maiss fraterno e mais conforme à Santa vontade de Deus. Que Maria Santíssima nos ensine a deixar-se introduzir na contemplação da beleza do rosto misericordioso de Cristo e na experiência da profundidade do seu amor.
Amen
Pe. Dr. José Brinco