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A Familia Africana e as Migracao

AS CONTRIBUIÇÕES DA IGREJA PARA MELHOR APROVEITAMENTO DO ENCONTRO DESTES
DOIS FENÓMENOS SOCIAIS.
Mais do que apresentar teorias e conteúdos construídos sobre o fenómeno migratório e sobre a
família, quero suscitar debate nesta sala virtual.
Pretendo que a nossa Igreja seja uma proposta concreta para os problemas que assolam a nossa
sub-região e não apenas conjunto de teorias estéreis. Que seja uma fonte de transformação, de
mudança social.
Defino a Migração1 como uma “re-construção” da estrutura familiar: cortando e refazendo os
laços de identidade espaço-temporal, como podemos conferir no “mandato” de Abraão para
abandonar sua terra, a casa de seu pai, a sua cultura (seus ancestrais e seus deuses cfr. Gén.
12,1ss). Esta mudança é muitas vezes projectada e não poucas vezes espontânea, mas sempre
forçada.
O fenómeno migratório tem na sua génese causas naturais e humanas.
A morte aparece como a primeira causa apresentada na Bíblia: o fratricídio que levou Adão a
mandar o filho restante a abandonar a família e emigrar para longe.
Hoje a morte continua a ser uma das principais causas de mudança no status familiar, seguida de
guerras, procura de melhores condições, calamidades e outras.
Portanto, a migração é marcada profundamente pela crise, pois implica separação de uma relação
consolidada e perturbação dum equilíbrio existente: evoca a perda, o sofrimento, a dor e, ao
mesmo tempo, reclama o que se tem conservado das culturas e dos laços precedentes2
.
1. A migração na Sagrada Escritura
Na Sagrada Escritura temos algumas referências que mostram a preocupação de Deus para com
os migrantes, e pede a Israel que tenha essa preocupação como prioridade, tratando-os com amor
e justiça: “O estrangeiro não afligirás, nem o oprimirás; pois estrangeiros fostes na terra do
Egipto” (Ex 22, 21); E não tirem vantagem deles: “Não oprimirás o diarista pobre e necessitado
de teus irmãos, ou de teus estrangeiros, que está na tua terra e nas tuas portas” (Dt 24, 14).
E quando se encontram em situação de vulnerabilidade, Deus cuida dos estrangeiros com
especial atenção: “Quando também fizerdes a colheita da vossa terra, o canto do teu campo não
segarás totalmente, nem as espigas caídas colherás da tua sega. Semelhantemente não rabiscarás
a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro.
Eu sou o Senhor vosso Deus” (Lv 19, 9-10).
3
Logo no início da história da salvação temos Abraão que, segundo a Bíblia, é originário da
cidade de Ur, dos Caldeus, no sul da Mesopotâmia. E era filho de Taré, descendente de Sem,
filho de Noé. Taré gerou também Nacor e Arã.
E Deus manda a Abraão que deixe sua terra e a casa de seu pai, seus familiares, seu povo, para ir
a terra de Canaã e formar uma nova família, uma nova nação (Gn 12, 1-3).
1 Migração é o processo de deslocamento de pessoas pelo globo terrestre que pode ocorrer dentro ou fora do
território nacional, de modo temporário ou permanente, ou ainda, ser espontânea ou forçada
2 C. REGALIA – E. SCABINI – G. ROSSI, “Introduzione”, in E. SCABINI e G. ROSSI, La migrazione come
evento famigliare, Vita e Pensiero, Milano 2008, pág. 7.
3 Cfr. C. LUSSI, Migrações na Bíblia, CSEM, 2017, pág. 1, https://www.csem.org.br/wpcontent/uploads/2018/08/MIGRA%C3%87%C3%95ES_NA_BIBLIA_Algumas_figuras_de_migrantes_nas_Escritu
ras.pdf, u.v. 15.04.2023.
A sua descendência torna-se imigrante no Egipto, sendo escravizada, para escapar a morte pela
fome na sua terra. E para libertá-los, Deus escolheu um homem que foi migrante a vida inteira:
Moisés nasceu no Egipto, viveu em Madiã, passou a vida andando pelo deserto e morreu antes
de chegar à terra prometida (cfr. Dt 34,5).
E aqui vemos a figura de Israel, povo de Deus, que depois da descida ao Egipto, onde por muito
tempo, muitas gerações, “construiu” uma nação territorial, fazer de novo uma migração (o
Êxodo), em direcção a terra prometida.
Portanto, mais uma vez a des-construção da família de Abraão (cfr. Ex. 17,3; Num. 14,2s), por
obrigação das circunstâncias. E como vemos, adiante, o Egipto será mais uma vez o lugar da
migração da família de Deus.
No novo testamento, podemos ver o caso da família de Jesus, que é obrigada a migrar, devido as
circunstâncias de ódio, perseguição e morte. Causas que estão na base de grande parte dos
motivos da migração hoje em África e na nossa sub-região: “José está na mesma situação que
muitos dos nossos…, que também estão em fuga, não por opção, mas por necessidade. Também
eles estão no exílio porque são forçados a procurar trabalho em outro lugar”. Afirma Enrique
Segovia, Guardião da Basílica da Natividade.
Ao que completa Francesco Patton, Custódio da Terra Santa: “… E assim, até certo ponto, São
José torna-se também para nós uma espécie de imagem contemporânea das muitas famílias e
pais que hoje são obrigados a deixar a sua pátria para cuidar dos seus entes queridos” 4
.
Por último, recordo como o Evangelho chegou a nós, por causa, em grande parte, as
perseguições a que foram sujeitos os Apóstolos e outros discípulos de Cristo no início da Igreja.
(cfr. Act. 8). Com estes casos de Migração na Bíblia pretendo mostrar como este fenómeno
coexistente ao homem, constitui hoje um problema social, que mexe especialmente, com as
famílias africanas, tocando a sua essência e refazendo-as muitas vezes de base cortando os laços
ancestrais e tradicionais.
2. A migração em África
A nossa sociedade está cada vez mais fluída e o mundo sempre mais violento, alguns países
gozando de uma economia florescente e outros vivendo na extrema pobreza, alguns cujas regras
sociais garantem a segurança e o bem-estar e outros onde a vida nada vale e a morte é rápida.
Com isto, muitos indivíduos e famílias são obrigados a deixar suas terras de origem em busca de
segurança e trabalho, fugindo da opressão e repreensão política em busca de sobrevivência para
si e para sua prole. Elenco a seguir vários tipos de migração que se pode destacar na nossa
realidade.
E tendo em conta que, seja qual for o motivo, a migração atira a pessoa para um estado de stress,
empobrecendo o principal sistema de suporte do indivíduo – a sua rede social e pessoal -, mais
adiante trataremos dos efeitos dessa separação dos grupos de pertença, do mundo tranquilizante
da família alargada e, não poucas vezes, da própria família nuclear, deixando para trás a própria
história, a própria memória, a própria identidade.
2.1. Tipos de Migração (em África)
Vários são os motivos que obrigam as pessoas a migrarem. Por isso, existem diversos tipos de
migração, dos quais se destacam:
1. Migração externa e migração interna
4 Cfr. CMC-TERRA SANTA, Em sua fuga para o Egito José encontra um abrigo, https://cmcterrasanta.org/fr/media/terra-santa-news/24533/em-sua-fuga-para-o-egito-jos%C3%A9-encontra-um-abrigo, u.v.
15.04.2023.
2. Migração temporária e migração permanente
3. Migração sazonal e transumância
4. Migração espontânea e migração forçada
5. Migração intra-regional e inter-regional (há também a chamada migração intra-urbana
6. Êxodo rural e êxodo urbano
7. Migração pendular
8. Diáspora
9. Nomadismo
2.2. Os efeitos des-construtores do fenómeno migratório nas famílias e culturas
africanas.
A África é um povo em migração. O continente emigra, mas também tem acolhido vários
estrangeiros que deixam seus países também pelas razões políticas, económicas e naturais. Essas
migrações têm impactos sobre as relações entre os povos autóctones e os migrantes.
Segundo a OIM, uma das categorias mais vulneráveis a este fenómeno são as crianças que “se
deslocam voluntariamente e involuntariamente enfrentam vários desafios que ainda estão por
compreender e documentar devidamente por região e a nível nacional”5
Este facto mostra-nos o estado das famílias, elas se tornam incapazes de sustentar e proteger seus
membros, obrigando a uma emigração de todas as idades, principalmente, os jovens e crianças.
A DW numa notícia em 2016 afirmava que “pais e chefes de família em alguns países africanos,
nomeadamente na África subsaariana, ignorando os riscos e perigos da emigração clandestina,
por falta de informações ou de escolaridade, obrigam as suas crianças a abandonarem o
continente africano para, como dizem, “procurar o bem-estar na Europa”.6
E nesta deslocação alguns acabam por se fixar nas terras de acolhimento reconstruindo as suas
identidades e se desligando das originais. Este é o efeito des-construtor, ou seja, se
desconstituem (o efeito desconstrutor) as narrativas familiares ancestrais para se adaptar as
encontradas ou mesmo reinventando novas narrativas, novas identidades, novas culturas (o efeito
construtor).
Os efeitos da migração sobre as famílias são vários, mas aqui procurarei colocar apenas alguns,
para a nossa reflexão conjunta.
Desde já falamos da mudança na estrutura familiar e, consequentemente, na comunitária. Com o
melhoramento dos sistemas de comunicação, as viagens deixam de ser uma separação
“definitiva” e as famílias ganham um estatuto transnacionais, onde os vínculos afectivos que
ligam as pessoas da mesma família e comunidade mantêm-se a distância.
A triangulação afectiva – progenitores-caretaker substituto-filho, – com a entrada de uma terceira
pessoa na vida dos filhos. As mudanças nas relações familiares dos géneros e intergeracionais7
.
Como vemos a migração pode ser uma ferida como uma oportunidade. Para as crianças deixadas
para trás, «os órfãos da emigração, os filhos left behind», a sua infância é marcada pela privação
da presença dos pais, especialmente da manifestação quotidiana do amor e atenção materna. Isto
determina a sua condição psico-física, escolástica, sobre equilíbrio funcional e emotivo no
núcleo familiar, sobre os comportamentos dentro e fora do círculo doméstico.
5 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM), Relatório sobre Migração em África,
Addis Abeba, 2020, pag. 207.
6 B. BARRY and A. ROCHA, Famílias africanas e a emigração clandestina, Deutsche Welle
https://www.dw.com/pt-002/fam%C3%ADlias-africanas-e-a-imigra%C3%A7%C3%A3o-clandestina/a-36591459,
u.v. 17.4.2023
7 Cfr. C. GIULIANI, “Cultura, migrazione e famiglia nella letteratura psico-sociale”, in E. SCABINI e G. ROSSI,
La migrazione come evento famigliare, V&P, Roma, 2008, pág. 269s.
Este é outro aspecto a destacar: a feminização da migração; pois estudos mostram que os filhos
de mães migrantes são os mais expostos aos efeitos deste fenómeno, como o estado de ânsia ou o
sentimento de medo e solidão8
.
O familiar, considera Cigoli e Scabini, “tem uma estrutura dramática: é a sede do bem-estar da
pessoa e matriz da sua identidade, mas pode ser também a sede de grave patologia pessoal e da
difusão da dor intransponível na relação entre as pessoas.”9 Por isso, ao tocar neste genoma, a
migração provoca, como vimos acima, no caso dos filhos left behind, o aumento da pobreza,
num ciclo vicioso, com consequências como crianças abandonadas e meninos nas ruas, crescente
aumento de grupos minoritários e insatisfeitos, levando a violências nas zonas urbanas, inclusive
com actos de xenofobia.
O outro aspecto a considerar é o das pessoas que partem para um país estrangeiro, geralmente,
para Europa, mas também, para outras paragens: onde vê-se desfeito o cuidado da herança
familiar, entendida como acolhimento e acção com o fim de construir e manter a relação ou,
melhor, o cuidado da hereditariedade, o processo de transmissão entre as gerações/estirpes:
O trabalho mais difícil para quem migra é saber construir e gerir sínteses complexas, de
reactualizar e resignificar laços com objectos e pessoas; em suma, de pôr em diálogo as múltiplas
diferenças em que está a viver10
.
Portanto reclama-se uma acção envolvente da parte de diversas instituições nacionais e
internacionais para ajudar a instalar centros de formação e de ajuda, nomeadamente nos bairros
periféricos, a fim de promover o emprego e combater a pobreza no seio dos jovens. E a Igreja,
como uma mãe e a “maior” instituição de caridade no mundo, preocupa-se com a situação cada
vez mais gritante das famílias migrantes, nesta região africana.
Papa Francisco aconselha a termos em muita consideração os migrantes, como enfim nos ensina
a Bíblia, pois as «pessoas que emigram «experimentam a separação do seu contexto de origem e,
muitas vezes, também um desenraizamento cultural e religioso. A fractura tem a ver também
com as comunidades de origem, que perdem os elementos mais vigorosos e empreendedores, e
as famílias, particularmente quando emigra um ou ambos os progenitores, deixando os filhos no
país de origem». Por conseguinte, também deve ser «reafirmado o direito a não emigrar, isto é, a
ter condições para permanecer na própria terra»
3. Contribuições da Igreja para amenizar esses efeitos e as suas consequências
Que acções na sua contribuição para transformar essa realidade em construções de identidades
fortalecidas?
A Igreja continua a ver na família, um recurso fundamental na sua missão. Por isso, tem cuidado
especial para com esta instituição, manifestando e propondo soluções e acções que possam
contribuir para o bem-estar da família e dos seus membros, apesar das suas feridas. A mais
recente acção a destacar foi a realização da conferência anual realizada na nossa sub-região, mais
concretamente, pela The Southern African Catholic Bishops’ Conference”, em que se destaca a
migração em África. Ou o seminário de 27 a 31 de março, em Lumko sobre migração.
Onde o Bispo Kizito declarou: “Precisamos conhecer o número atuário de pessoas que vivem nas
nossas Comunidades. A SACBC tornou as crianças sem documentos e os apátridas uma
prioridade”
11
.
8 Cfr. L. ZANFRINI, “Dai «lavoratori ospiti» alle famiglie transnazionali”, in E. SCABINI e G. ROSSI, ibid., pág.
183ss.
9 V. CIGOLI – E. SCABINI, “Relazione familiare: la prospettiva psicologica”, in ibid., pág. 22.
10 Cfr. C. GOZZOLI – C. REGALIA, “Cura dei Legami familiari nella migrazione”, in E. SCABINI e G. ROSSI, Le
parole della famiglia, VeP, Milão, 2006, pág. 158.
11 VATICAN NEWS
Em 2015, o Cardeal Peter Turkson, como prefeito do Pontifício Conselho de Justiça e Paz,
anunciou a criação de um novo fórum para desenvolver soluções concretas para a crise
migratória, com os embaixadores africanos na Santa Sé12, como forma de ouvir as propostas das
próprias vozes africanas: “Por que todos estão falando sobre isso e nada está vindo da África?”,
… “Não estamos ouvindo os chefes de Estado africanos. Não estamos ouvindo a União
Africana”, declarou.
Devemos celebrar os migrantes como heróis nacionais que se sacrificam para o bem das suas
famílias e das suas pátrias, em vez de condena-los por terem abandonado os filhos. Deve ser um
contributo da Igreja, acompanhando e sustendo as famílias desfeitas pela migração. No dizer do
Papa, as nossas acções devem «não ficar pela abstração, mas se tornar verdade encarnada e
concreta, colocando uma série de desafios que nos fazem mover, obrigam a assumir novas
perspetivas e produzir novas reacções» (FT 128).
Esta nossa conferência, e outras semelhantes, é outro exemplo das acções concretas que se
espera, e se tem visto, da Igreja.
Conclusão
Com as suas acções a Igreja, convida os Organismos a pensar e realizar actos concretos para
solucionar o problema ou minimizar os efeitos da migração nas famílias e pessoas na África,
pois como indica o Relatório sobre Migração em África a “realização de um futuro positivo para
África exigirá o empenho sustentado da África e dos seus parceiros globais em trabalharem em
conjunto para assegurar que ninguém seja deixado para trás, e que a migração continue a ser
positiva, segura e benéfica para todos”
13, pois o homem africano só se realiza pela comunidade e
na comunidade.
Deve-se apostar na educação para a vida, que implica a educação a “uma comunidade de
propriedade, que une todos os seus membros ao que conserva e fortifica a vida, por exemplo a
terra, o património hereditário”14
Deve-se ter em conta que na separação a qualidade da relação com quem fica ao cuidado das
crianças, a intensidade de comunicação com os progenitores ausentes, o envio de dinheiro são
factores importantes para a maior ou menor dificuldade vivida pelos filhos dos migrantes.
Portanto, sendo os jovens a grande camada populacional, sob os efeitos da migração, continua o
Relatório, as soluções passam também por um “grande investimento no desenvolvimento da
juventude, incluindo competências e desenvolvimento empresarial, político, social e de
liderança.
Apelamos também à revitalização rural, ligações rural-urbanas, megacidades entre países
Africanos, desenvolvimento de corredores regionais e implementação da ZCLCA. Tudo isto é
fundamental para aprofundar a migração intra-Africana para a transformação e desenvolvimento
do continente. Isto requer uma liderança dedicada, um acompanhamento empenhado e uma visão
e planeamento a longo prazo, acompanhados de uma governação transparente e responsável.
E para terminar deixo, aqui, o tema que o Santo Padre escolheu na sua tradicional mensagem
para o 109º dia dos Migrantes e Refugiados a ser celebrado no próximo dia 24 de setembro:
Livres de escolher se migrar ou permanecer15. O objectivo é “promover uma renovada reflexão
sobre um direito ainda não codificado a nível internacional: o direito a não ter que emigrar ou,
por outras palavras, o direito a poder permanecer na própria terra”.

12 M. C. L. BINGEMER, “Migração e a pressão Vaticana à África”, in https://consolata.org/index.php?option
=com_k2&view=item&id=557:migracao-e-a-pressao-vaticana-a-africa&lang=en
13 OIM 2020
14 R. R. de A. ALTUNA, Cultura tradicional Banto, Secretariado A. Pastoral, Luanda 1985, pág. 203