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A ULTIMÍSSIMA VONTADE DO RESSUSCITADO

Pe. José Joaquim, missionário comboniano (Moçambique)

Comentário ao evangelho do III Domingo da Páscoa (Jo 21, 1-19): 1 de maio de 2022

Neste terceiro domingo da Páscoa, a liturgia da Igreja propõe a leitura do epílogo do evangelho de João, isto é, a última parte do evangelho que os estudiosos pensam que foi acrescentada ao texto principal mais tarde. No nosso entender, João 21, 1-19 apresenta a ultimíssima vontade de Jesus a poucos dias da sua ascensão aos céus, retomando pontos principais da sua pregação durante a sua vida pública, a saber:
1. A necessidade de confiar no Senhor e não nas próprias forças (vv.1-3)
2. A importância de obedecer à voz de Senhor no meio da desilusão (vv. 4-8)
3. A comunhão com o Senhor e com os demais discípulos (vv. 9-13)
4. O amor ao Senhor como requisito para apascentar o rebanho (vv. 15-17)
5. Prontidão e urgência do seguimento do Senhor (vv. 18-19)

Ao afirmar que os discípulos “não pescaram nada” (v. 3), o evangelho pretende remeter o cristão à frustração que os discípulos sentiram pela pesca improdutiva. Em meio à incerteza sobre a ressurreição de Jesus, os discípulos regressaram aos seus afazeres, àquelas condições em que Jesus os encontrou quando os chamou pela primeira vez. Esta atitude dos discípulos é, do ponto de vista humano, aceitável, pois eles não podiam continuar a abraçar os ideais de um homem que, segundo os boatos que se difundiam, não ressuscitou, o seu corpo fora roubado por alguns dos seus fãs (cf. Mt 28, 13). É neste contexto que o evangelho relata que naquela noite os discípulos não pescaram nada. “Não pescaram nada”, em grego diz-se: EPÍASAN UDÉN, e quer simplesmente dizer, “não pegaram peixe algum”. Para os primeiros cristãos, a expressão evocava o facto de que os apóstolos, nos primórdios da Igreja, nem sempre conseguiam convencer as pessoas para abraçarem a fé no Senhor ressuscitado. Segundo a visão do autor do nosso trecho, isso devia-se ao facto de eles, no meio das dificuldades e incertezas, confiarem em sim próprios e não em Jesus que os tinha chamado e enviado. De facto, esta relação de causa e efeito entre a falta de confiança em Jesus e a pesca improdutiva pode constatar-se, também hoje, na vida da igreja. Quando deixamos de depositar a confiança no Senhor, a nossa missão, e toda a nossa existência, torna-se improdutiva e sentimo-nos frustrados. Não é por acaso que a literatura sapiencial do Antigo Testamento exortava a confiar no Senhor e a não se fiar na própria inteligência (Pr 3, 5).
Depreende-se daí que é necessário obedecer à voz do Senhor para que a missão da Igreja produza frutos. O texto evangélico, nos versículos 4-8, fala da pesca abundante graças à obediência dos discípulos à orientação do Senhor. Neste trecho, a pesca abundante é descrita com duas expressões: “quantidade de peixes” (em grego PLÉTHOS TÔN ÍKTHÚON) no versículo 6, e “rede cheia de grandes peixes” (em grego, DÍKTUON MESTÒN IKTHÚON MEGÁLON), no versículo 11. Para os primeiros cristãos, estas expressões descreviam a produtividade da evangelização dos apóstolos e seus seguidores. A rede é símbolo do anúncio e os peixes simbolizam os neófitos, aqueles que abraçavam a fé cristã pelo batismo. Ora, no contexto do testamento de Jesus, uma pesca sempre abundante torna-se uma exigência muito forte do Mestre para aqueles que devem continuar a Sua missão na terra. Esta mensagem de despedida do Mestre desafia a Igreja a lançar as redes em todos os contextos culturais e socioeconómicos como característica principal da sua identidade. Paulo sintetiza esta incontornável vontade de Jesus ao dizer a Timóteo: “Prega a palavra, insiste em tempo propício e fora dele, convence, repreende e exorta com toda a compreensão e competência”. (2 Tim 4, 2)
O nosso texto apresenta nos versículos 9-13 mais um ponto do testamento do Senhor, a saber, que os cristãos devem manter a comunhão com Ele e entre si, para que o anúncio seja atrativo e credível. O tema da comunhão é apresentado neste texto através do simbolismo da refeição. Jesus diz aos discípulos no versículo 12: “Venham matabichar” (em grego, DEÛTE ARISTÉSATE). Jesus convida-os a partilharem a primeira refeição do dia com Ele, a estarem juntos. Importa notar que no contexto da igreja nascente, a refeição que os cristãos tomavam em comum chamava-se ÁGAPE e era um momento em que reforçavam os laços de comunhão entre si para que a mensagem que pregavam fosse credível e relevante para o contexto em que viviam. Assim deve ser também para os cristãos de hoje: urge requalificar a comunhão com o Senhor e com os outros crentes em Cristo, para que o evangelho que pregamos seja atrativo para a sociedade. Esta vontade de Jesus aparece bem clara na sua oração sacerdotal quando pede que os seus seguidores sejam um só, para que o mundo creia (cf. Jo 17, 21).
Nos versículos 15-17 Jesus verifica o amor de Simão, filho de João, se era forte e puro ou não. Após a experiência de ter negado o Mestre, Simão toma a oportunidade para dizer-lhe que o amava de verdade. O Mestre vendo a firmeza e sinceridade de Simão, confia-lhe o cuidado e o pastoreio do seu rebanho. É interessante notar que Jesus usa dois verbos interrelacionados: “cuidar de” (em grego BOSKO) e “pastorear” (em grego POIMAINO). Assim Pedro, que representa os evangelizadores de todos os tempos, tem que cuidar e pastorear, proteger e alimentar, amparar e nutrir, o rebanho do Senhor. É esta a última vontade do Mestre também para a Igreja de hoje: o amor que a Igreja tem para com Cristo deve levá-la a não permitir que ao rebanho faltem o pão da palavra e a eucaristia.
Jesus decide terminar o seu diálogo com Simão, filho de João, com um imperativo: “Segue-me!” (AKOLOUTHEI MOI) (v. 19). Este imperativo tem base no que Jesus dissera a Simão no primeiro encontro: “Tu és Simão, o filho de João. Hás-de chamar-te Cefas.” (Jo 1, 42). O ser rocha (pedra) conferido por Jesus a Simão no primeiro encontro, deve concretizar-se num fiel e firme discipulado. Daí que seguir o Senhor deixa de ser um mero convite e torna-se um imperativo, uma ordem, um mandamento, uma orientação de natureza testamentária, uma última vontade, que desafia a Igreja a caminhar nas pegadas de Cristo, a abraçar os Seus ideais, sentir o que Ele sentia, optar pelo que Ele optava, amar como Ele amava e perdoar como Ele perdoava. É esta a ultimíssima vontade que Cristo nos deixou, devemos acolhê-la e realizá-la, através do nosso trabalho para que, a exemplo de São José, o trabalho humano se torne um hino de louvor, participação na obra da salvação e oportunidade para apressar a vinda do Reino (Papa Francisco, Carta apostólica, Patris corde, Por ocasião do 150º aniversário da declaração de São José como padroeiro universal da igreja).